Um cadim de tudo que gosto, música, literatura, fotografia e outras coisinhas que me fazem feliz....
sábado, 31 de março de 2012
"Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem - pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela - apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho.
Quando eu morrer o cavalo preto vai ficar sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave.
Aviso que ele não tem nome: basta chama-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez.
Ela Sorriu. Ulisses ia gostar, ia pensar que o cavalo era ela própria. Era?"
Clarice Lispector In: Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres
sexta-feira, 30 de março de 2012
Clariceando
"Deus é uma palavra? Se for estou cheio dele: milhares de palavras metidas dentro de um vaso fechado e que às vezes eu abro - e me deslumbro. Deus-palavra é deslumbrador." Clarice Lispector In: Um sopro de vida
"Um sábio me dizia: esta existência, não vale a angústia de viver. A ciência, se fôssemos eternos, num transporte de desespero inventaria a morte. Uma célula orgânica aparece no infinito do tempo. E vibra e crescee se desdobra e estala num segundo. Homem, eis o que somos neste mundo. Assim falou-me o sábio e eu comecei a ver dentro da própria morte, o encanto de morrer.
Um monge me dizia: ó mocidade, és relâmpago ao pé da eternidade! Pensa: o tempo anda sempre e não repousa; esta vida não vale grande coisa. Uma mulher que chora, um berço a um canto; o riso, às vezes, quase sempre, um pranto. Depois o mundo, a luta que intimida,quatro círios acesos : eis a vida. Isto me disse o monge e eu continuei a ver dentro da própria morte, o encanto de morrer.
(...)
Uma mulher me disse: vem comigo! Fecha os olhos e sonha, meu amigo. Sonha um lar, uma doce companheira que queiras muito e que também te queira. No telhado, um penacho de fumaça. Cortinas muito brancas na vidraça. Um canário que canta na gaiola.Que linda a vida lá por dentro rola!
Pela primeira vez eu comecei a ver, dentro da própria vida, o encanto de viver."
Guilherme de Almeida.
Partem tão tristes...
Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
... outros nenhuns por ninguém.
Tão tristes, tão saudosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes, os tristes,
tão fora de esperar bem
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém
João Roiz de Castelo-Branco In: Cancioneiro Geral
Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
... outros nenhuns por ninguém.
Tão tristes, tão saudosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes, os tristes,
tão fora de esperar bem
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém
João Roiz de Castelo-Branco In: Cancioneiro Geral
quinta-feira, 29 de março de 2012
quarta-feira, 28 de março de 2012
Clariceando
"Não vivo perigosamente em fatos. Vivo em extremo perigo quando sozinho caio em
profunda meditação. É quando perigosamente fico isento até de Deus
Há um silêncio total dentro de mim. Assusto-me.
Como explicar que esse silêncio é aquele que chamo de o Desconhecido.
Tenho medo dele. Não porque pudesse
Ele infantilmente me castigar (castigo é coisa de homens).
É um medo que vem do que me ultrapassa.
E que é eu também. Porque é grande a minha grandeza.
Não vivo perigosamente em fatos.
Vivo em extremo perigo quando sozinho caio em profunda meditação.
É quando perigosamente fico isento até de Deus.
E isento até de mim.
À beira de um precipício abismado no seco alto de um penhasco.".
Clarice Lispector In: Um sopro de vida
Há um silêncio total dentro de mim. Assusto-me.
Como explicar que esse silêncio é aquele que chamo de o Desconhecido.
Tenho medo dele. Não porque pudesse
Ele infantilmente me castigar (castigo é coisa de homens).
É um medo que vem do que me ultrapassa.
E que é eu também. Porque é grande a minha grandeza.
Não vivo perigosamente em fatos.
Vivo em extremo perigo quando sozinho caio em profunda meditação.
É quando perigosamente fico isento até de Deus.
E isento até de mim.
À beira de um precipício abismado no seco alto de um penhasco.".
Clarice Lispector In: Um sopro de vida
terça-feira, 27 de março de 2012
Quintanares
segunda-feira, 26 de março de 2012
“Uma Arte”:
“Não é tão difícil dominar a arte de perder; tanta coisa parece preenchida pela intenção de ser perdida que sua perda não é nenhum desastre. Perca alguma coisa todo dia. Aceite a novela das chaves perdidas, a hora desperdiçada, aprender a arte de perder não é nada. Exercite-se perdendo mais, mais rápido: lugares, e nomes e... para onde mesmo você ia viajar? Nenhum desastre... Perdi o relógio de minha mãe. E olha, minha última e minha penúltima casa ficaram para trás. Não é difícil dominar a arte de perder. Perdi duas cidades, adoráveis. E, mais ainda, alguns domínios, propriedades, dois rios, um continente. Sinto sua falta, mas não foi um desastre. Até mesmo perder você (a voz gozada, o gesto que eu amava) eu não posso mentir. É claro que não é tão difícil dominar a arte de perder apesar de parecer (pode escrever!) desastre.” Elisabeth Bishop
domingo, 25 de março de 2012
A canção da vida
A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)
(Mario Quintana in:Esconderijos do Tempo)
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)
(Mario Quintana in:Esconderijos do Tempo)
"eu sempre me fascinei com o matemático indiano srinivasa ramanujan. ele dizia que para resolver seus intricados teoremas era movido apenas pela beleza das equações.
na poesia também é assim. É uma espécie de exercício do não-dizer, mas que nos dilata de beleza quando acabamos de ler um poema." (Hilda Hilst)
"Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você. Eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende?
Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse o meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu.
Mas se você tivesse ficado, teria sido diferente?
Melhor interromper o processo em meio: quando se conhece o fim, quando se sabe que doerá muito mais — por que ir em frente?
Não há sentido: melhor escapar deixando uma lembrança qualquer, lenço esquecido numa gaveta, camisa jogada na cadeira, uma fotografia — qualquer coisa que depois de muito tempo a gente possa olhar e sorrir, mesmo sem saber por quê. Melhor do que não sobrar nada, e que esse nada seja áspero como um tempo perdido.
Tinha terminado, então. Porque a gente, alguma coisa dentro da gente, sempre sabe exatamente quando termina.
Mas de tudo isso, me ficaram coisas tão boas. Uma lembrança boa de você, uma vontade de cuidar melhor de mim, de ser melhor para mim e para os outros. De não morrer, de não sufocar, de continuar sentindo encantamento por alguma outra pessoa que o futuro trará, porque sempre traz, e então não repetir nenhum comportamento. Ser novo.
Mesmo que a gente se perca, não importa. Que tenha se transformado em passado antes de virar futuro. Mas que seja bom o que vier, para você, para mim. Te escrevo, enfim, me ocorre agora, porque nem você nem eu somos descartáveis.
. . . E eu acho que é por isso que te escrevo, para cuidar de ti, para cuidar de mim – para não querer, violentamente não querer de maneira alguma ficar na sua memória, seu coração, sua cabeça, como uma sombra escura." (Caio Fernando Abreu)
sábado, 24 de março de 2012
CANÇÃO DA CASA VAZIA
O tempo parou e frio, lá fora,
é o sol das almas.
Verdadeiramente falando, este não é um tempo de...
preparação. Antes,
de quaresma e envelhecimento.
Exemplos: da cal nas paredes,
da moldura nos retratos,
das cadeiras nas salas,
do verniz nos móveis,
das construções nos prazos antigos,
da chuva nas calhas,
até mesmo da dor no corpo morrendo
Março Março Março: Pai,
olha, lá fora, como o vento do outono
brinca com as roupas nos varais!
O sol ainda não esquentou de vez, Pai,
Porém, se o sol se esquentar de vez,
As quaresmas lá fora se salientarão tanto,
Que a gente sentirá a tristeza da agonia,
A despedida da Terra.
Principalmente, Pai,
Se as cigarras derem de cantar.
Dantas Mota
Clariceando
"Mas de vez em quando vinha a inquietação insuportável: queria entender o
bastante para pelo menos ter mais consciência daquilo que ela não entendia.
Embora no fundo não quisesse compreender. Sabia que aquilo era impossível e
todas as vezes que pensara que se compreendera era por ter compreendido errado.
Compreender era sempre um erro - preferia a largueza tão ampla e livre e sem
erros que era não-entender. Era ruim, mas pelo menos se sabia que se estava em
plena condição humana."
Clarice Lispector, in 'Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres
Clarice Lispector, in 'Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres
sexta-feira, 23 de março de 2012
Clariceando
"E quando o escuro dominar o aposento, uma lua enorme surgirá, depois dessa chuva, uma lua fresca e serena. E ela dormirá coberta de luar."
Clarice Lispector in: A Bela e a Fera
POEMA DO CONTRADIGO
Metade de mim é ego
e a outra metade, muda.
De um lado, parede cega
de outro, hera no muro.
Metade de mim esconde
o que a outra metade vê
uma se caga de medo
a outra bota pra foder.
Uma só diz palavrão
e a outra, padre-nosso
Se uma tem fogo nas ventas
a outra se mói de remorso.
Metade de uma é falaz
e a outra se faz de surda
uma de tudo é capaz
e a outra, caramuja.
Aranha caranguejeira,
uma se esconde entre espinhos
a outra, feito vieira,
se abriga em concha e arminho
Hermio Belo de carvalho
Aldeia: Chico Anisio e Arnaud Rodrigues
http://youtu.be/ViIOOdMGRUM
Composição: Chico Anisio e Arnaud Rodrigues
Aldeia, aldeia, aldeia de pedra, aldeia
Semeia, semeia, sementes de ferro, semeia
Aldeia, aldeia, aldeia de pedra, aldeia
Semeia, semeia, sementes de ferro, semeia
Lá vem a procissão
Toca o sino late o cão
E todo mundo corre e todo mundo morre de pasta na mão
Oh de pasta na mão
Aldeia, aldeia, aldeia de pedra, aldeia
Semeia, semeia, sementes de ferro, semeia
Em cada rosto uma expressão
Em cada bucho a digestão
Um novo carro, nova capa
Enquanto velho me pede pão
O pão nosso de cada dia, dái-nos hoje, creditai, nossas dívidas
Assim como não nos perdoam nossos credores,
Não nos perdoam nossos credores...
Aldeia, aldeia, aldeia de pedra, aldeia
Semeia, semeia, sementes de ferro, semeia
Aldeia, aldeia, aldeia de pedra, aldeia
Semeia, semeia, sementes de ferro, semeia
Composição: Chico Anisio e Arnaud Rodrigues
Aldeia, aldeia, aldeia de pedra, aldeia
Semeia, semeia, sementes de ferro, semeia
Aldeia, aldeia, aldeia de pedra, aldeia
Semeia, semeia, sementes de ferro, semeia
Lá vem a procissão
Toca o sino late o cão
E todo mundo corre e todo mundo morre de pasta na mão
Oh de pasta na mão
Aldeia, aldeia, aldeia de pedra, aldeia
Semeia, semeia, sementes de ferro, semeia
Em cada rosto uma expressão
Em cada bucho a digestão
Um novo carro, nova capa
Enquanto velho me pede pão
O pão nosso de cada dia, dái-nos hoje, creditai, nossas dívidas
Assim como não nos perdoam nossos credores,
Não nos perdoam nossos credores...
Aldeia, aldeia, aldeia de pedra, aldeia
Semeia, semeia, sementes de ferro, semeia
Aldeia, aldeia, aldeia de pedra, aldeia
Semeia, semeia, sementes de ferro, semeia
quinta-feira, 22 de março de 2012
Água!
Tu não tens gosto, nem cor nem aroma.
Não podemos definir-te,
Saboreamos-te sem te conhecermos.
Tu não és necessária à vida: tu és a própria vida!
... Tu penetra-nos dum prazer
Que não se explica pelos sentidos.
Contigo reentram em nós os poderes
Aos quais tínhamos renunciado…
Por tua graça,
Abrem –se em nós todas as fontes corrompidas do nosso coração
Tu és a maior riqueza que existe no mundo,
E és também a mais delicada,
Tu, tão pura no ventre da terra.
Pode-se morrer a dois passos dum lago de água salgada.
Pode-se morrer de dois litros de orvalho que alguns sais retêm em suspensão.
Tu não aceitas mistura alguma,
Tu não suportas alteração alguma,
Tu és uma desconfiada divindade…
Mas tu espalhas em nós
Uma felicidade infinitamente simples.
Antoine de Saint-Exupéry in: Terra dos Homens
Tu não tens gosto, nem cor nem aroma.
Não podemos definir-te,
Saboreamos-te sem te conhecermos.
Tu não és necessária à vida: tu és a própria vida!
... Tu penetra-nos dum prazer
Que não se explica pelos sentidos.
Contigo reentram em nós os poderes
Aos quais tínhamos renunciado…
Por tua graça,
Abrem –se em nós todas as fontes corrompidas do nosso coração
Tu és a maior riqueza que existe no mundo,
E és também a mais delicada,
Tu, tão pura no ventre da terra.
Pode-se morrer a dois passos dum lago de água salgada.
Pode-se morrer de dois litros de orvalho que alguns sais retêm em suspensão.
Tu não aceitas mistura alguma,
Tu não suportas alteração alguma,
Tu és uma desconfiada divindade…
Mas tu espalhas em nós
Uma felicidade infinitamente simples.
Antoine de Saint-Exupéry in: Terra dos Homens
quarta-feira, 21 de março de 2012
“Na
hora da saudade, da tristeza, do desamparo, é com ele que contamos: o tempo.
Queremos dormir e acordar dez anos depois curados daquela ideia fixa que se
instalou no peito, aquela obsessão por alguém que já partiu de nossas vidas.
No entanto, tudo o que nos invadiu com intensidade, tudo o que foi realmente
verdadeiro e vivenciado profundamente não passa. Fica. Acomoda-se dentro da
gente e de vez em quando cutuca, se mexe, nos faz lembrar da sua existência.
O grande segredo é não se estressar com este inquilino incômodo, deixá-lo em
paz no quartinho dos fundos e abrir espaço na
casa para outros acontecimentos.” Marta Medeiros
casa para outros acontecimentos.” Marta Medeiros
terça-feira, 20 de março de 2012
Joaquim:
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher. O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
(João Cabral de Melo Neto, in: Obras Completas)
"Que tempo é o nosso? Há quem diga que é um tempo a que falta amor. Convenhamos
que é, pelo menos, um tempo em que tudo o que era nobre foi degradado,
convertido em mercadoria. A obsessão do lucro foi transformando o homem num
objecto com preço marcado. Estrangeiro a si próprio, surdo ao apelo do sangue,
asfixiando a alma por todos os meios ao seu alcance, o que vem à tona é o mais
abominável dos simulacros. Toda a arte moderna nos dá conta dessa catástrofe: o
desencontro do homem com o homem. A sua grandeza reside nessa denúncia; a sua
dignidade, em não pactuar com a mentira; a sua coragem, em arrancar máscaras e
máscaras. "
Eugénio de Andrade in 'Os Afluentes do Silêncio'
Eugénio de Andrade in 'Os Afluentes do Silêncio'
Outonos e primaveras...
A primavera só pode ser o que é porque o outono a embalou nos braços
Primavera é tempo de ressurreição. A vida cumpre o ofício de florescer ao seu tempo. O que hoje está revestido de cores precisou passar pelo silêncio das sombras. A vida não é por acaso. Ela é fruto do processo que a encaminha sem pressa e sem atropelos a um destino que não finda, porque é ciclo que a faz continuar em insondáveis movimentos de vida e morte. O florido sobre a terra não é acontecimento sem precedências. Antes da flor, a morte da semente, o suspiro dissonante de quem se desprende do que é para ser revestido de outras grandezas. O que hoje vejo e reconheço belo é apenas uma parte do processo. O que eu não pude ver é o que sustenta a beleza.
A arte de morrer em silêncio é atributo que pertence às sementes. A dureza do chão não permite que os nossos olhos alcancem o acontecimento. Antes de ser flor, a primavera é chão escuro de sombras, vida se entregando ao dialético movimento de uma morte anunciada, cumprida em partes.
Pe. Fábio de Mello
A primavera só pode ser o que é porque o outono a embalou nos braços
Primavera é tempo de ressurreição. A vida cumpre o ofício de florescer ao seu tempo. O que hoje está revestido de cores precisou passar pelo silêncio das sombras. A vida não é por acaso. Ela é fruto do processo que a encaminha sem pressa e sem atropelos a um destino que não finda, porque é ciclo que a faz continuar em insondáveis movimentos de vida e morte. O florido sobre a terra não é acontecimento sem precedências. Antes da flor, a morte da semente, o suspiro dissonante de quem se desprende do que é para ser revestido de outras grandezas. O que hoje vejo e reconheço belo é apenas uma parte do processo. O que eu não pude ver é o que sustenta a beleza.
A arte de morrer em silêncio é atributo que pertence às sementes. A dureza do chão não permite que os nossos olhos alcancem o acontecimento. Antes de ser flor, a primavera é chão escuro de sombras, vida se entregando ao dialético movimento de uma morte anunciada, cumprida em partes.
Pe. Fábio de Mello
Chão de muita estrada andei,
Céu de muita estrela eu vi
Dor de amor eu já sofri
E mesmo assim de amar não desisti.
Pe Fábio de Melo
segunda-feira, 19 de março de 2012
domingo, 18 de março de 2012
Mais um carinho da Ana do pequenasepifaniaseoutrosdevaneios, adoro!!!
As Regras são: Falar 8 coisas sobre mim e repassar para 9
Blogs.
- sou intensa
- absurdamente apaixonada por meu filho e minha neta
- historiadora e educadora por paixão
- franca
- leal aos amigos
- sonhadora
- adoro uma prosinha
- não vivo sem música e literatura
- Blogs indicados:
Clariceando
" A realidade não me surpreende. Mas não é verdade: de repente tenho uma
tal fome da "coisa acontecer mesmo" que mordo num grito a realidade com
dentes dilacerantes. E depois suspiro sobre a presa cuja carne comi.
E por muito tempo, de novo, prescindo da realidade real e me aconchego
em viver da imaginação." Clarice Lispector, in: Um sopro de Vida.
tal fome da "coisa acontecer mesmo" que mordo num grito a realidade com
dentes dilacerantes. E depois suspiro sobre a presa cuja carne comi.
E por muito tempo, de novo, prescindo da realidade real e me aconchego
em viver da imaginação." Clarice Lispector, in: Um sopro de Vida.
sábado, 17 de março de 2012
Os Limites do Tempo
Meia face de sol - a tarde finda
nos limites do céu e da calçada.
Uma tarde partida, quando ainda
refletida entre cores, desbotada.
Aquarela dispersa - morte linda.
(Colorido de tez avermelhada)
mas o tempo ilusório fez infinda
meia face de sol desfigurada.
Murchas pétalas de horas finge o monte
rente a linha deserta do horizonte
feito rosa pendida... rosa-flores.
Nos limites da sombra projetada
nos contornos da noite aproximada
percebo o tempo farejando as cores.
Meia face de sol - a tarde finda
nos limites do céu e da calçada.
Uma tarde partida, quando ainda
refletida entre cores, desbotada.
Aquarela dispersa - morte linda.
(Colorido de tez avermelhada)
mas o tempo ilusório fez infinda
meia face de sol desfigurada.
Murchas pétalas de horas finge o monte
rente a linha deserta do horizonte
feito rosa pendida... rosa-flores.
Nos limites da sombra projetada
nos contornos da noite aproximada
percebo o tempo farejando as cores.
Majela Colares
O Silêncio da Flor
Foi quando as flores não vingaram frutos:
(nos secos ramos, ressecaram tardes)
as folhas murchas despencaram pálidas
se dispersaram contornando rastros
pelos caminhos conspiravam fugas
levando marcas de uma morte lenta,
porque raízes omitiram seiva
para mante-las sempre ao caule, sempre...
mas foi da terra sim, que a morte veio
do chão que a planta ruminava nuvens,
o fio de água, transformado em lodo,
contido pela rigidez da argila.
Foi quando as folhas se acharam adubo:
(nas secas tardes, renasceram ramos)
antigas folhas inundando o caule,
imune seiva, frutos-flores, quando...
Foi quando as flores não vingaram frutos:
(nos secos ramos, ressecaram tardes)
as folhas murchas despencaram pálidas
se dispersaram contornando rastros
pelos caminhos conspiravam fugas
levando marcas de uma morte lenta,
porque raízes omitiram seiva
para mante-las sempre ao caule, sempre...
mas foi da terra sim, que a morte veio
do chão que a planta ruminava nuvens,
o fio de água, transformado em lodo,
contido pela rigidez da argila.
Foi quando as folhas se acharam adubo:
(nas secas tardes, renasceram ramos)
antigas folhas inundando o caule,
imune seiva, frutos-flores, quando...
Majela Colares
DA POESIA
A poesia é o
carnaval e o funeral da vida,
a dispersão
febril das cinzas,
o aspergir
sutil da consciência,
galáctica e
puntual,
da metrópole
ou da periferia,
a poesia é o
sinal que reluz e ressuscita.
Contida,
panfletária, flama e aço,
é o laço que
prende e solta a asa,
e engole a
paisagem imensa,
asfáltica,
amazônica, essencial,
e sobrevive,e
cresce e intumesce,
pulsando o
imaginário sem tempo,
sonolenta,
ácida e fugidia.
Poesia é o pão
da alma,
é o elo humano
do idílico, do esotérico.
Nela cabe o
mundo, o fungo do cadáver,
a aura febril
do recém-nascido,
a chave
excitante da viagem erótica da palavra e do enigma.
A poesia ara o
campo, reflete a senda e sua origem, semeia.
É um ir e
voltar, sempre, como nuvem,
um escuro
necessário e pesado sobre a luz do dia
ou um raio, um
ritual sobre o desejo esparramado
e incontido
dentro dela.
Irrequieta,
arquiteta das emoções primeiras, das primazias,
confluência
dos encontros e caminhos,
é arma que
brande e tece a rima de novos caminhos,
peita a
hipocrisia, a História e os sistemas.
É heresia a
poesia, concreta, do dia-a-dia sombrio,
exala o sêmen
da criação e o abortar da palavra não dita,
e cinge o nó
que revigora a alma que escreve e ama.
Nela cabe tudo
e extravasa e tudo pulveriza
Nela,
lembrança e o pó do tempo tomam corpo sobre a mesa.
Nada cala um
poema,
serena, a
poesia clama a chama,
incendeia, é
arma que atira e acorda a realidade
esdrúxula,
descontrolada e sem lapso,
ao tempo
engole e é compasso, é colapso.
E a alma do
poeta é grande, elástica,
das divagações
exóticas da sílaba aos rumores
eróticos da
palavra.
A ele, poeta
verdadeiro, não importa o tempo
nem a fantasia
do sucesso,
poesia é
sempre avesso,
nem sempre
verso,
é a
inquietação ante ao ultraje.
Resoluta e
destra,
é santa ou
puta, porém sempre certa,
é a hipocrisia
das sensações,
caudal de
lembranças que o dinheiro não compra
e não acaba,
é a grande
vaga,
que varre a
tentação, dá sobrevida,
e a cada
passo, é liberdade ou ladainha sem fim
para os
conformados.
Poetas, os
casaldáligas, os thiagos, os operários,
provocadores
da construção de um novo tempo,
de um novo
ritmo que todos dancem,
onde liberdade
é ver-se outro no espelho,
ser parte da
paisagem sem ser paisagem,
ter o pé na
alma e no limo,
sem perder a
brancura da viagem,
ou a escureza
da sensação que mostra o caminho da luz que,
se não
clareia, transforma.
(Vicente
Caririin: Alma Assoreada)
sexta-feira, 16 de março de 2012
Amo Minas...
Amo Minas
A de riquezas naturais
Amo Minas
A minha Minas de pessoas especiais ...
Amo Minas
A de histórias originais
Amo Minas
A minha Minas que luta por ideais...
Amo Minas
A de montanhas monumentais
Amo Minas
A minha Minas de belezas reais ...
Amo Minas
A de encantos gerais
Amo Minas
A minha Minas Gerais...
"É onconasci, oncomoro, oncoadoro! Bom demais sô!..."
Amo Minas
A de riquezas naturais
Amo Minas
A minha Minas de pessoas especiais ...
A de histórias originais
Amo Minas
A minha Minas que luta por ideais...
Amo Minas
A de montanhas monumentais
Amo Minas
A minha Minas de belezas reais ...
Amo Minas
A de encantos gerais
Amo Minas
A minha Minas Gerais...
"É onconasci, oncomoro, oncoadoro! Bom demais sô!..."
Mena Barreto
"Olhar passarinhos me ajuda a andar de cabeça erguida "
Marcelo Benini in : "O Capim Sobre o Coleiro"
* * *
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Marcelo Benini in : "O Capim Sobre o Coleiro"
* * *
Às vezes recebia no
quarto um sanhaço E despia-se para o
enleioOlvidava o que tinha de
casca,Preferindo a
brisaO traupídeo, porém, tinha dogmas de
asaE partia.O vento e a noite
encolhiam-na A residuozinho de
gente.
Marcelo Benini in :"O Capim Sobre o Coleiro"
.
quarta-feira, 14 de março de 2012
Dia Nacional
da Poesia
O dia 14 de março foi escolhido em homenagem
ao grande poeta Castro Alves, é o dia do nascimento do escritor baiano famoso
pelos seus versos românticos como os de "Navio Negreiro".
"Poeta, não é somente o que escreve.
É aquele que sente a poesia, se extasia sensível ao achado de uma rima à autenticidade de um verso"
É aquele que sente a poesia, se extasia sensível ao achado de uma rima à autenticidade de um verso"
Cora coralina
Os poemas
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
:Mário Quintana in:Esconderijos do tempo.
terça-feira, 13 de março de 2012
A Chegada da Caixa de Abelhas
Eu mesma pedi, esta caixa de madeira
Branca e quadrada como uma cadeira, pesada demais.
Seria o esquife de um anão
Ou de um bebê quadrado,
Não fosse o rumor que vem de dentro.
Branca e quadrada como uma cadeira, pesada demais.
Seria o esquife de um anão
Ou de um bebê quadrado,
Não fosse o rumor que vem de dentro.
Está fechada agora, é perigosa.
Devo zelar por ela a noite inteira
E não posso ir embora.
Não há saída, é impossível ver o que há nela.
Só uma pequena tela, sem janelas.
Devo zelar por ela a noite inteira
E não posso ir embora.
Não há saída, é impossível ver o que há nela.
Só uma pequena tela, sem janelas.
Espio pela fresta.
Tudo escuro, escuro,
Pelo enxame zangado de mãos africanas,
Miúdas, prensadas para exportação,
Negro com negro, escalando com ódio.
Tudo escuro, escuro,
Pelo enxame zangado de mãos africanas,
Miúdas, prensadas para exportação,
Negro com negro, escalando com ódio.
Soltá-las de que jeito?
O zumbido é o que mais me apavora,
As sílabas incompreensíveis.
São como uma turba romana,
Não são nada sozinhas, mas juntas, meu deus!
O zumbido é o que mais me apavora,
As sílabas incompreensíveis.
São como uma turba romana,
Não são nada sozinhas, mas juntas, meu deus!
Ouço ansiosa esse latim furioso.
Não sou um Cesar.
Só encomendei uma caixa de maníacas.
Posso devolver.
Ou deixá-las morrer, sou a dona, não preciso tomar conta.
Não sou um Cesar.
Só encomendei uma caixa de maníacas.
Posso devolver.
Ou deixá-las morrer, sou a dona, não preciso tomar conta.
Imagino se têm fome.
Imagino se me esqueceriam
Se eu abrisse a tampa e me fosse e virasse árvore.
Um laburno, com suas louras colunas
E anáguas de cereja.
Imagino se me esqueceriam
Se eu abrisse a tampa e me fosse e virasse árvore.
Um laburno, com suas louras colunas
E anáguas de cereja.
Podiam muito bem me ignorar
Em meu véu funerário, em meu vestido lunar.
Não sou feita de mel.
O que querem de mim?
Amanhã serei Deus, e vou soltá-las enfim.
Em meu véu funerário, em meu vestido lunar.
Não sou feita de mel.
O que querem de mim?
Amanhã serei Deus, e vou soltá-las enfim.
A caixa é apenas temporária.
SYLVIA PLATH
segunda-feira, 12 de março de 2012
sábado, 10 de março de 2012
Roseando
"Querendo procurar,
nunca não encontra. De repente, quando a gente não espera, o sertão vem. Posso
me esconder de mim? Eu queria e não queria ouvir. Não adianta se dar as costas:
se sonha, já se fez. O sertão vem e volta. Explico: o diabo vige dentro do
homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos.
Medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor
não vê? Vida muito esponjosa. Careço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que
dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do
bonito e a alegria longe da tristeza! Quero todos os pastos demarcados... esse
mundo é muito misturado. O sertão é confusão em grande demasiado sossego. Um
feio mundo, exagerado. O chão sem se vestir. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é
achado. Eu sem segurança nenhuma, só as dúvidas, e nem soubesse o que tinha de
fazer.
Eu já achava que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia ser como na sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho. Era o que eu acho, é o que eu achava. Ser dono definitivo de mim, era o que eu queria, queria. Existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. A gente quer se afastar de si próprio... pra isso é que o muito se fala. O senhor sabe o que é o silêncio? É a gente mesmo, demais. " Guimarães Rosa in: Grande Sertão Veredas
Eu já achava que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia ser como na sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho. Era o que eu acho, é o que eu achava. Ser dono definitivo de mim, era o que eu queria, queria. Existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. A gente quer se afastar de si próprio... pra isso é que o muito se fala. O senhor sabe o que é o silêncio? É a gente mesmo, demais. " Guimarães Rosa in: Grande Sertão Veredas
sexta-feira, 9 de março de 2012
quinta-feira, 8 de março de 2012
Clariceando
"Ao sair do edifício, o inesperado me tomou. O que antes fora
apenas chuva na vidraça, abafado de cortina e aconchego, era na rua a tempestade
e a noite. Tudo isso se fizera enquanto eu descera pelo elevador? Dilúvio
carioca, sem refúgio possível, Copacabana com água entrando pelas lojas rasas e
fechadas, águas grossas de lama até o meio da perna, o pé tateando para
encontrar calçadas invisíveis. Até movimento de maré já tinha, onde se juntasse
o bastante de água começava a atuar a secreta influência da Lua: já havia fluxo
e refluxo de maré. E o pior era o temor ancestral gravado na carne: estou sem
abrigo, o mundo me expulsou para o próprio mundo, e eu que só caibo numa casa
nunca mais terei casa na vida, esse vestido ensopado sou eu, os cabelos
escorridos nunca secarão, e sei que não serei dos escolhidos para a Arca, pois
já selecionaram o melhor casal de minha espécie.
Pelas esquinas os carros de motor paralisado, e nem sombra de táxi. E a alegria feroz de vários homens finalmente impossibilitados de voltar para casa. A alegria demoníaca dos homens livres ainda mais ameaçava quem só queria casa própria. Andei sem rumo ruas e ruas, mais me arrastava que andava, parar é que era o perigo. De minha desmedida desolação eu só conseguia que ela fosse disfarçada. Alguém, radiante sob uma marquise, disse: que coragem, hein, dona! Não era coragem, era exatamente o medo. Porque tudo estava paralisado, eu que tenho medo do instante em que tudo pare tinha que andar.
Pelas esquinas os carros de motor paralisado, e nem sombra de táxi. E a alegria feroz de vários homens finalmente impossibilitados de voltar para casa. A alegria demoníaca dos homens livres ainda mais ameaçava quem só queria casa própria. Andei sem rumo ruas e ruas, mais me arrastava que andava, parar é que era o perigo. De minha desmedida desolação eu só conseguia que ela fosse disfarçada. Alguém, radiante sob uma marquise, disse: que coragem, hein, dona! Não era coragem, era exatamente o medo. Porque tudo estava paralisado, eu que tenho medo do instante em que tudo pare tinha que andar.
E eis que nas águas vejo um táxi. Avançava
cuidadosamente, quase centímetro por centímetro, tateando o chão com as rodas.
Como é que eu me apoderaria daquele táxi? Aproximei-me. Não podia me dar ao luxo
de pedir, lembrei-me de todas as vezes em que, por ter tido a doçura de pedir,
não me deram. Contendo o desespero, o que sempre me dá uma aparência de força,
disse ao chofer: "o senhor vai me levar para casa! é de noite! tenho filhos
pequenos que devem estar assustados com minha demora, é de noite, ouviu?!" Para
minha grande surpresa, vai o homem e simplesmente diz que sim. Ainda sem
entender, entrei. O carro mal se movia nas ondas lamacentas, mas movia-se - e
chegaria. Eu só pensava: eu não valho tanto. Daí a pouco já estava pensando: e
eu que não sabia que valia tanto. E daí a pouco era a dona-de-casa de meu táxi,
já tomara posse de direito do que gratuitamente me fora dado, e energicamente
tomava medidas úteis: torcia cabelos e roupas, tirava os sapatos amolecidos,
enxugava o rosto que mais parecia ter chorado. A verdade, sem pudor, é que eu
tinha chorado. Muito pouco, e misturando motivos, mas chorado. Depois de arrumar
minha casa, encostei-me bem confortável no que era meu, e de minha Arca assisti
ao mundo acabar-se.
Uma senhora aproximou-se então do carro. Devagar como
este avançava, ela pôde acompanhá-lo agarrada em aflição ao trinco da porta. E
literalmente me implorava para compartilhar do táxi. Era tarde demais para mim,
e seu itinerário me desviaria de meu caminho. Lembrei-me, porém, de meu
desespero de havia cinco minutos, e resolvi que ela não teria o mesmo. Quando eu
lhe disse que sim, seu tom de imploração imediatamente cessou, substituído por
uma voz extremamente prática: "É, mas espere um pouco, vou até aquela
transversal buscar na casa da costureira o embrulho do vestido que deixei lá
para não molhar". "Estará ela se aproveitando de mim?", indaguei-me na velha
dúvida se devo ou não deixar que se aproveitem de mim. Terminei cedendo. Ela
demorou à vontade. E voltou com um enorme embrulho pousado nas mãos estendidas,
como se até seu próprio corpo pudesse macular o vestido. Instalou-se totalmente,
o que me deixou tímida na minha própria casa.
E começou o meu calvário de anjo - pois a mulher, com sua
voz autoritária, já tinha começado a me chamar de anjo. Não poderia ser menos
comovente o seu caso: aquela era a noite de uma première e, se não fosse eu, o
vestido se estragaria na chuva ou ela se atrasaria e perderia a première. Eu já
tivera as minhas premières, e nem as minhas me haviam comovido. "A senhora não
sabe o milagre que me aconteceu", contou-me com firmeza. "Comecei a rezar na
rua, a rezar ara que Deus me mandasse um anjo que me salvasse, fiz promessa de
não comer quase nada amanhã. E Deus me mandou a senhora." Constrangida,
remexi-me no banco. Eu era um anjo destinado a proteger premières? a ironia
divina me encabulava. Mas a senhora, com toda a força de sua fé prática, e
tratava-se de mulher forte, continuava impositivamente a reconhecer o anjo em
mim, o que só pouquíssimas pessoas até hoje reconheceram, e sempre com a maior
discrição. Tentei sem jeito a leveza de um sarcasmo: "Não me supervalorize, sou
apenas um meio de transporte". Enquanto que a ela nem sequer ocorreu
compreender-me, eu a contragosto percebia que o argumento na verdade não me
isentava: anjos também são meios de transporte. Intimidada, calei-me. Fico muito
impressionada com quem grita comigo: a mulher não gritava, mas claramente
mandava em mim. Impossibilitada de confrontá-la, refugiei-me num doce cinismo:
aquela senhora, que tratava com tanto vigor do próprio êxtase, devia ser mulher
habituada a comprar com dinheiro, e na certa terminaria por agradecer ao anjo
com um cheque, também levando em conta que a chuva já devia ter lavado toda a
minha distinção. Com um pouco mais de confortável cinismo, em silêncio,
declarei-lhe que dinheiro seria um meio tão legítimo como qualquer outro de
agradecer, já que a moeda dela era mesmo moeda. Ou então - diverti-me eu - bem
poderia dar-me em agradecimento o vestido da première, pois o que ela realmente
deveria agradecer não era ter um vestido seco, e sim ter sido atingida pela
graça, isto é, por mim. Dentro de um cinismo cada vez melhor, pensei: "Cada um
tem o anjo que merece, veja que anjo lhe coube: estou cobiçando por pura
curiosidade um vestido que nem sequer vi. Agora quero ver como é que sua alma
vai se arrumar com a idéia de um anjo interessado em roupas". Parece-me que, no
meu orgulho, eu não queria ter sido escolhida para servir de anjo à tolice
ardente de uma senhora.
A verdade é que ser anjo estava começando a me pesar.
Conheço bem esse processo do mundo: chamam-me de bondosa, e pelo menos durante
algum tempo fico atrapalhada para ser ruim. Comecei também a compreender como os
anjos se chateiam: eles servem a tudo. Isso nunca me ocorrera. A menos que eu
fosse um anjo muito embaixo na escala dos anjos. Quem sabe, até, eu era só
aprendiz de anjo. A alegria satisfeitona daquela senhora começava a me deixar
sombria: ela fizera uso exorbitante de mim. Fizera de minha natureza indecisa
uma profissão definida, transformara minha espontaneidade em dever,
acorrentava-me, a mim, que era anjo, o que a essa altura eu já não podia mais
negar, mas anjo livre. Quem sabe, porém, eu só fora mandada ao mundo para aquele
instante de utilidade. Era isso, pois, o que eu valia. No táxi, eu não era um
anjo decaído: era um anjo que caía em si. Caí em mim e fechei a cara. Um pouco
mais e teria dito àquela de quem eu era com tanta revolta o anjo da guarda: faça
o obséquio de descer já e imediatamente deste táxi! Mas fiquei calada,
agüentando o peso de minhas asas cada vez mais contritas pelo seu enorme
embrulho. Ela, a minha protegida, continuava a falar bem de mim, ou melhor, de
minha função. Emburrei. A senhora sentiu e calou-se um pouco desarvorada. Já na
altura de Viveiros de Castro a hostilidade se declarara muda entre
nós.
- Escute, disse-lhe eu de repente, pois minha
espontaneidade é faca de dois gumes também para os outros, o táxi vai antes me
deixar em casa e depois é que segue com a senhora.
- Mas, disse ela surpreendida e em começo de indignação,
depois vou ter que dar uma volta enorme e vou me atrasar! é só um pequeno desvio
para me deixar em casa!
- Pois é, respondi seca. Mas não posso entrar pelo
desvio.
- Eu pago tudo! insultou-me ela com a mesma moeda com que
teria se lembrado de me agradecer.
- Eu é que pago tudo, insultei-a.
Ao saltar do táxi, assim como quem não quer nada, tive o
cuidado de esquecer no banco as minhas asas dobradas. Saltei com a profunda
falta de educação que me tem salvo de abismos angelicais. Livre de asas, com a
grande rabanada de uma cauda invisível e com a altivez que só tenho quando pára
de chover, atravessei como uma rainha os largos umbrais do Edifício Visconde de
Pelotas. "
CLARICE LISPECTOR. Mal-estar de um anjo. In Para Não Esquecer.
quarta-feira, 7 de março de 2012
ANTIPHONA DE NOSSA SENHORA (Salve Regina) - J. J. Emerico Lobo de Mesqui...
Lobo de Mesquita era mulato, filho natural do português José Lobo de Mesquita e de sua escrava Joaquina Emerenciana, tendo nascido na Vila do Príncipe (atual Serro) por volta de 1746. Ali teve sua formação musical e iniciou suas atividades profissionais, como organista e como compositor. Por volta de 1776, transferiu-se para o Arraial do Tejuco (atual Diamantina), que era o centro urbano de maior importância na região, enquanto centro de controle da mineração. Ele já aparece como organista na Matriz de Santo Antônio em fins de 1783 ou início de 1784, passando a tocar na Igreja da Ordem Terceira do Carmo em 1789. Sua atuação certamente incluía todas as obrigações de um Mestre de Capela (ou de Mestre de Música, para utilizar a distinção estabelecida pelo musicólogo Padre Jaime Diniz): compor as obras para as festas contratadas, arregimentar cantores e instrumentistas para a execução da obra, ensaiar, reger (provavelmente do console do órgão, que era seu instrumento) e provavelmente ensinar (preparando jovens para o exercício da profissão de músico). Foi também Alferes do Terão da Infantaria dos Homens Pardos (não se sabe se atuando na banda de música). Tranferiu-se para a Vila Rica, passando a atuar na Matriz de Nossa Senhora do Pilar e na Ordem Terceira do Carmo, em 1798. Dois anos depois, passou o cargo a Francisco Gomes da Rocha e transferiu-se para o Rio de Janeiro, tocando na Igreja da Ordem Terceira do Carmo entre 1801 e 1805, quando faleceu.
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