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terça-feira, 31 de julho de 2012


Prosa de Passarim


Chega aqui. Quero prosea um pouco...falar de tudo, desse mundo louco, do que tenho e não tá aqui...
Falar do céu, da nuvem, do orvalho, da folha, da árvore, do galho, falar do ninho que fiz...
... Falar da companheira escolhida, escondida na minha raiz...
Falar de um tempo sem guerras, sem árvores tombando ao chão, sem incêndio, sem gritaria, sem tiros, sem erosão.
Falar de uma bica d’água, onde lavava minhas asa antes do meu voar... Falar de uma sombra grande, de uma paineira gigante e do grande jatobá.
Falar da meninada, que vivia na zoada, correndo pra lá e pra cá...
Eles armava arapuca, até estilingue tinha, mas ainda assim, era tão bão...
Porque mardade, mardade...ara, sô, num tinha não.
Tinha gente que acudia, era aquela gritaria!
- Larga o Passarim, num mata não!
Sabe moço, naquele tempo, a gente era conhecido pelo canto, pelo nome e pela cor – até os menino sabia – e logo que amanhecia, vinha correndo, dotô! Pra começar com a gente um dia sempre diferente, de brincadeira, brilho e paz.
Era tudo diferente das coisa que hoje se faz
Hoje a vida tá mudada:
O mar não é do peixe, nem o céu da passarada!
Tá chorando, Seu dotô?
Choro, sim, meu passarinho!
É que de repente me lembrei de que fui esse menino, que entendia os passarinhos e brincava no quintal.
E o que mais me dói agora é a verdade que sei:
Chegou a mocidade
Fui ganhando idade
Perdi as minhas asas
E nunca mais voei!
Miryan Lucy

"Já tive torres internas que foram ao chão. Até que alguém, com uma frase, ou com um gesto, as fez virem abaixo. Tinha gente dentro, tinha eu" Martha Medeiros
"A prova de que estou recuperando a saúde mental, é que estou cada minuto mais permissiva: eu me permito mais liberdade e mais experiências. E aceito o acaso. Anseio pelo que ainda não experimentei. Maior espaço psíquico. Estou felizmente mais doida." (Clarice Lispector)

segunda-feira, 30 de julho de 2012



É doce morrer no mar

É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar

A noite que ele não veio foi
Foi de tristeza pra mim
Saveiro voltou sozinho
Triste noite foi pra mim

É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar

Saveiro partiu
de noite foi
Madrugada não voltou
O marinheiro bonito
sereia do mar levou

É doce morrer no mar
Nas ondas verdes do mar

Nas ondas verdes do mar meu bem
Ele se foi afogar
Fez sua cama de noivo no colo de Iemanjá


  - Dorival Caymmi e Jorge Amado , 1941

"De uma coisa estou certo: o que eu amo, é terrivelmente idêntico ao que sempre amei. O que amo é esse ar de viagem, esse balanço do trem, essa chegada, essa partida. A minha paz é em movimento:
Quieto, é como se ardesse por dentro. É a primeira vez em minha vida (não agora nesses últimos dias) em que sinto a presença do coração. Não há nada efetivo, mas é como um engenho, que viesse subindo aos poucos do fundo do mar....."

Lúcio Cardoso (Diário Completo)_Pág.285

quarta-feira, 25 de julho de 2012


"No fundo, são misturas. Misturam-se almas nas coisas;
misturam-se. No fundo, são misturas. Misturam-se almas nas coisas;
misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e é
assim que as pessoas e as coisas misturadas saem cada qual de
sua esfera e se misturam: o que é precisamente o contrato e a
troca."
Marcel Mauss in:  Ensaio sobre a Dádiva



"senão quando
uma inesperada desconhecida substância desta tarde: algo entre a sonata e o fim não sugere entretanto, sequer e agora o recurso fácil de um pôr-de-sol em abril. A luz da noite não corrompe o instante em que à brisa parece dado o ensejo de varrer da praça folhas e juízes. não sei o que dizer, não sei, em hora assim pois me faltam fadas e duendes. estou só e não me bastam Cristo e a Primavera. Digo palavras sonoras, como: “outrora”, mas de nada elas nos salvam, nem de nós. No pio dos sabiás há uma rara beleza e ouvi-los seria o Evangelho. eis tudo, amigos, e é só e é tanto e logo o relógio sem corda em cada um de nós baterá as seis horas, sete vezes."
Carlos Rodrigues Brandão in: Sacerdotes de viola
*Hoje, 25 de Julho é o dia do Escritor.

"Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de livraria." (Jorge Luis Borges)

terça-feira, 24 de julho de 2012

Errata para as vezes em que eu podia ter viajado mas não fui, por covardia; em que devia ter falado e não falei, por preguiça; em que devia ter me calado e falei, por ser estabanada e tender a falar antes de refletir.
Uma errata para as muitas decisões atrapalhadas, tantas indecisões desnecessárias, tantas lágrimas por tolices tanta mágoa por infantilidade.
Errata para os erros e também para o que não foi erro, mas desatenção, inabilidade, incompetência mesmo.
  Lya Luft    


       


domingo, 22 de julho de 2012


“Um homem ρrecisα viαjαr. Por sυα contα, não ρor meio de históriαs, imαgens, livros oυ TV. Precisα viαjαr ρor si, com seυs olhos e ρés, ραrα entender o qυe é seυ. Pαrα υm diα ρlαntαr αs sυαs árvores e dαr-lhes vαlor. Conhecer o frio ραrα desfrυtαr o cαlor. E o oρosto. Sentir α distânciα e o desαbrigo ραrα estαr bem sob o ρróρrio teto. Um homem ρrecisα viαjαr ραrα lυgαres qυe não conhece ραrα qυebrαr essα αrrogânciα qυe nos fαz ver o mυndo como o imαginαmos, e não simρlesmente como é oυ ρode ser; qυe nos fαz ρrofessores e doυtores do qυe não vimos, qυαndo deveríαmos ser αlυnos, e simρlesmente ir ver."                                         Amyr Klink in: Mar sem fim

faça um dia de domingo!

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Amigo
No rumo certo do vento
amigo é nau de se chegar
em lugar azul.
Amigo é esquina
onde o tempo para
e a Terra não gira,
antes paira em doçura
contínua.
Oceano tramando sal,
mel envelhecendo fruta,
no rumo certo do vento,
amigo é estrela sempre.
Rosana Murray

quinta-feira, 19 de julho de 2012



"Evaporam-se-lhe os vestidos na paisagem.
É apenas o vento que vai levando seu corpo pelas alamedas.
A cada passo, uma flor, a cada movimento, um pássaro.
E quando pára na ponte, as águas todas vão correndo,
em verdes lágrimas para dentro dos seus olhos."
(Cecília Meireles)

terça-feira, 17 de julho de 2012

PÔR-DO-SOL EM ITATIAIA

Nascentes efêmeras
Em clareiras súbitas
Entre as luzes tardas
Do imenso crepúsculo.

Negros megálitos
Em doce decúbito
Sob o peso frágil
Da pálida abóbada.

Claro, subjacente
O vale infinito
A estender-se múltiplo

Inventando espaços
Dilatando a angústia
Criando o silêncio...

Vinicius de Moraes In: "Livro de Sonetos"
SONETINHO A PORTINARI

O pintor pequeno
O grande pintor
Ruim como um veneno
Bom como uma flor

Vi-o da Inglaterra
Uma tarde, vi-o
No ermo, vadio
Brodósqui onde a terra

É cor de pintura
Muito louro, vi-o
Dentro da moldura

De um quadro de aurora
O olhar azul frio:
- Lá ia ele embora...

Vinicius de Moraes In: "Livro de Sonetos"
"Imagens do ar, suaves, flutuantes,
Ou deliradas, do alcantil sonoro,
Cria nossa alma; imagens arrogantes,
Ou qual aquela, que há de riso e choro:
Uma imagem fatal (para o ocidente,
Para os campos formosos d'áureas gemas,
O sol, cingida a fronte de diademas,
índio e belo atravessa lentamente):
Estrela de carvão, astro apagado
Prende-se mal seguro, vivo e cego,
Na abóbada dos céus, — negro morcego
Estende as asas no ar equilibrado."

Sousândrade In:"Guesa Errante"

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Das Pedras

Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.

Cora Coralina
Canção com parêntesis

Meu coração que voava
Ficou surpreso
A boca se fechou, a música
Descaiu num tom menor
Meu corpo que retornava
Ao que nunca tinha sido
(senão em nostalgia)
retoma o que sempre fingiu ser.

Ficámos á espera, minha vida e eu
(sem amargura mas desconcertadas)
de que apagues os parêntesis
e voltes, e te permitas
as ternuras, o encanto, as surpresas
que iluminava( como os meus)
teus próprios dias

Lya Luft In: "O lado fatal"

domingo, 15 de julho de 2012

 O Deus que acredito
"Eu acredito em Deus.

Mas não sei se o Deus em que eu acredito é o mesmo Deus em que acredita o balconista, a professora, o porteiro.
O Deus em que acredito não foi globalizado.
O Deus com quem converso não é uma pessoa, não é pai de ninguém.
É uma idéia, uma energia, uma eminência.
Não tem rosto, portanto não tem barba.
Não caminha, portanto não carrega um cajado.
Não está cansado, portanto não tem trono.
O Deus que me acompanha não é bíblico.
Jamais se deixaria resumir por dez mandamentos, algumas parábolas e um pensamento que não se renova.
O meu Deus é tão superior quanto o Deus dos outros, mas sua superioridade está na compreensão das diferenças, na aceitação das fraquezas e no estímulo à felicidade.
O Deus em que acredito me ensina a guerrear conforme as armas que tenho e detecta em mim a honestidade dos atos.Não distribui culpas a granel: as minhas são umas, as do vizinho são outras, e nossa penitência é a reflexão.
Ave Maria, Pai Nosso, isso qualquer um decora sem saber o que está dizendo.
Para o Deus em que acredito só vale o que se está sentindo.
O Deus em que acredito não condena o prazer. Se ele não tem controle sobre enchentes e violência, se não tem controle sobre traficantes, corruptos e vigaristas, se não tem controle sobre a miséria, o câncer e as mágoas, então que Deus seria ele se ainda por cima condenasse o que nos resta: o lúdico, o sensorial, a libido que nasce com toda criança e se desenvolve livre, se assim o permitirem?
O Deus em que acredito não é tão bonzinho: me castiga e me deixa uns tempos sozinha.
Não me abandona, mas me exige mais do que uma visita à igreja, uma flexão de joelhos e uma doação aos pobres: cobra caro pelos meus erros e não aceita promessas performáticas, como carregar uma cruz gigante nos ombros.
A cruz pesa onde tem que pesar: dentro. É onde tudo acontece e tudo se resolve.
Este é o Deus que me acompanha.
Um Deus simples.
Deus que é Deus não precisa ser difícil e distante, sabe-tudo e vê-tudo.
Meu Deus é discreto e otimista. Não se esconde, ao contrário, aparece principalmente nas horas boas para incentivar, para me fazer sentir o quanto vale um pequeno momento grandioso: um abraço numa amiga, uma música na hora certa, um silêncio.
É onipresente, mas não onipotente.
Meu Deus é humilde.
Não posso imaginar um Deus repressor e um Deus que não sorri.
Quem não te sorri não é cúmplice."

Martha Medeiros
O Novo Homem

O homem será feito
em laboratório.
...
Será tão perfeito como no antigório.
Rirá como gente,
beberá cerveja
deliciadamente.
Caçará narceja
e bicho do mato.
Jogará no bicho,
tirará retrato
com o maior capricho.
Usará bermuda
e gola roulée.
Queimará arruda
indo ao canjerê,
e do não-objecto
fará escultura.
Será neoconcreto
se houver censura.
Ganhará dinheiro
e muitos diplomas,
fino cavalheiro
em noventa idiomas.
Chegará a Marte
em seu cavalinho
de ir a toda parte
mesmo sem caminho.
O homem será feito
em laboratório
muito mais perfeito
do que no antigório.
Dispensa-se amor,
ternura ou desejo.
Seja como for
(até num bocejo)
salta da retorta
um senhor garoto.
Vai abrindo a porta
com riso maroto:
«Nove meses, eu?
Nem nove minutos.»
Quem já concebeu
melhores produtos?
A dor não preside
sua gestação.
Seu nascer elide
o sonho e a aflição.
Nascerá bonito?
Corpo bem talhado?
Claro: não é mito,
é planificado.
Nele, tudo exacto,
medido, bem posto:
o justo formato,
o standard do rosto.
Duzentos modelos,
todos atraentes.
(Escolher, ao vê-los,
nossos descendentes.)
Quer um sábio? Peça.
Ministro? Encomende.
Uma ficha impressa
a todos atende.
Perdão: acabou-se
a época dos pais.
Quem comia doce
já não come mais.
Não chame de filho
este ser diverso
que pisa o ladrilho
de outro universo.
Sua independência
é total: sem marca
de família, vence
a lei do patriarca.
Liberto da herança
de sangue ou de afecto,
desconhece a aliança
de avô com seu neto.
Pai: macromolécula;
mãe: tubo de ensaio,
e, per omnia secula,
livre, papagaio, sem memória e sexo,
feliz, por que não?
pois rompeu o nexo
da velha Criação,
eis que o homem feito
em laboratório
sem qualquer defeito
como no antigório,
acabou com o Homem.
Bem feito.

Carlos Drummond de Andrade, in 'Versiprosa'

sábado, 14 de julho de 2012

- Nossa Dança -

Um Mestre Falando do Outro

Meu Quintana, os teus cantares
Não são, Quintana, cantares:
São, Quintana, quintanares.

Quinta-essência de cantares...
Insólitos, singulares...
Cantares? Não! Quintanares!

Quer livres, quer regulares,
Abrem sempre os teus cantares
Como flor de quintanares.

São cantigas sem esgares.
Onde as lágrimas são mares
De amor, os teus quintanares.

São feitos esses cantares
De um tudo-nada: ao falares,
Luzem estrelas luares.

São para dizer em bares
Como em mansões seculares
Quintana, os teus quintanares.

Sim, em bares, onde os pares
Se beijam sem que repares
Que são casais exemplares.

E quer no pudor dos lares.
Quer no horror dos lupanares.
Cheiram sempre os teus cantares

Ao ar dos melhores ares,
Pois são simples, invulgares.
Quintana, os teus quintanares.

Por isso peço não pares,
Quintana, nos teus cantares...
Perdão! digo quintana

Manuel Bandeira In: "Estrela da vida inteira"
Letra para uma Valsa Romântica

A tarde agoniza
Ao santo acalanto
Da noturna brisa.
E eu, que tambem morro,
Morro sem consolo,
Se não vens, Elisa!

Ai nem te humaniza
O pranto que tanto
Nas faces desliza
Do amante que pede

Suplicantemente
Teu amor, Elisa!

Ri, desdenha, pisa!
Meu canto, no entanto,
Mais te diviniza,
Mulher diferente,
Tão indiferente,
Desumana Elisa!

Manuel Bandeira

quinta-feira, 12 de julho de 2012

UMA CANÇÃO

Uma canção cantada por si mesma
o pensamento longe de pensado
o tempo a florescer livre de tempo
e tudo mais que oculto é contemplável

(Carlos Drumond de Andrade In: Obra Completa)


O CHÃO É CAMA
O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para a cama.
Sobre tapete ou duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a úmida trama.

E para repousar do amor, vamos à cama.


(Carlos Drumond de Andrade In: O amor natural)

terça-feira, 10 de julho de 2012

Concerto à céu aberto...


Quando eu nasci
o silêncio foi aumentado.
Meu pai sempre entendeu
Que eu era torto
Mas sempre me aprumou.
Passei anos me procurando por lugares nenhuns.
Até que não me achei - e fui salvo.
Às vezes caminhava como se fosse um bulbo.


Manoel de Barros In:"Concerto à céu aberto para solos de aves"
A dama ausente

Brilhará a lua que não vejo
nas montanhas de minha terra?
Para que amores na serra
Brilhará a lua que não vejo?

Mais um dia longe, tão longe
que nem mesmo a intuição alcança
os gestos da dama ausente.
As sombras enchem os meus olhos
fechados para o presente.
Mais um dia longe tão longe
que nem mesmo o amor alcança
os gestos da dama ausente...

Sérgio Milliet In: "Antologia dos poetas brasileiros: fase moderna" v.1

segunda-feira, 9 de julho de 2012


"Que abismo que há entre o espírito e o coração." Machado de Assis in: Quincas Borba
Aqui morava um rei

"Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado."

Ariano Suassuna In: "Poemas"

domingo, 8 de julho de 2012

Sonho domado

Sei que é preciso sonhar.
Campo sem orvalho, seca
A frente de quem não sonha.
Quem não sonha o azul do vôo
perde seu poder de pássaro.
A realidade da relva
cresce em sonho no sereno
para não ser relva apenas,
mas a relva que se sonha.
Não vinga o sonho da folha
se não crescer incrustado
no sonho que se fez árvore.
Sonhar, mas sem deixar nunca
que o sol do sonho se arraste
pelas campinas do vento.
É sonhar, mas cavalgando
o sonho e inventando o chão
para o sonho florescer.

Thiago de Mello In:"Melhores poemas"
" Eu deveria cantar. Rolar de rir ou chorar, eu deveria, mas tinha desaprendido essas coisas. Talvez então pudesse acender uma vela, correr até a igreja da Consolação, rezar um Pai Nosso, uma Ave Maria e uma Glória ao Pai, tudo que eu lembrava, depois enfiar algum trocado, se tivesse, e nos últimos meses nunca, na caixa de metal "Para as Almas do Purgatório". Agradecer, pedir luz, como nos tempos em que tinha fé."
 Caio Fernando Abreu In: Onde andará Dulce Veiga?

Clariceando


Encantos Gerais

sexta-feira, 6 de julho de 2012

E Agora José

"Acorda dona moça, a vida passa lá fora e você fica aí olhando pra dentro, fechada no nada. Flores precisam ser coloridas, sorrisos precisam ser enfeitados, estrelas estão amontoadas num canto esperando para iluminar os beirais das janelas. Hoje, uma borboleta comentou que você esqueceu sua aquarela na esquina da praça e crianças travessas andaram brincando de pintar vidraças, achando que eram cores sem dono, sem casa. O que foi que você perdeu, que de tão distante seus olhos não veem mais nada? O que encontrou pelo caminho que a fez descolorir e cansar de sorrir? Quero pintar um coração vermelho em sua boca, para que você se recorde de falar de amor, quero vaga lumes fazendo morada nas suas pestanas para iluminar seu olhar de flor. Vem dona moça, o tempo é agora, a vida é lá fora e tudo fica sem graça sem sua risada gostosa, sem sua mistura de cor.”
                                    Renata Fagundes in: Poema Daltônico

quinta-feira, 5 de julho de 2012


Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança.
Guimarães Rosa in: Primeiras estórias
                                   
                                                          
                                       
" Ah, o tempo é o mágico de todas as traições… E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os objetos invertidos, daí seu desajeitado tatear; só a pouco e pouco é que consegue retificar, sobre a postura dos volumes externos, uma precária visão. Subsistem, porém, outras pechas, e mais graves. Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente… E então?”
Guimarães Rosa - O Espelho.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

"Eu vou nomeando meus sonhos um por um. Colocando metas, fazendo projetos, com os dedos cruzados e minhas melhores vibrações. Claro que eu me frustro, faz parte da vidaMas meu chão eu fiz de mola. Posso cair todos os dias, mas o resultado da minha queda é o impulso." 
Fernanda Gaona

terça-feira, 3 de julho de 2012

Dentro desta mulher o mistério das coisas finge dormir” Lya Luft
                                                          
                                                                           
                                                       

"Sozinho, em meu esconderijo, convido-o e convido aos outros para entrarem em meu quintal. Há alguma sujeira que, de vez em quando, limpo. Quando não limpo é porque não percebo, ou percebo e tenho preguiça. Mas quando recebo visitas minha chama se acende ainda mais. E a felicidade de acolher me dá nova disposição. Trazem-me lenha os que me amam.'... 'Se quiser convidar outros amigos e seus medos, podem vir. Podem vir as esperanças deles também.'... 'Há bastante espaço e bastante tempo para prosas e poesias... E tem mais, a flor rara da montanha distante resolveu morar por aqui. Ela é linda!'
[Gabriel Chalita]

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Felicidade se acha em horinhas de descuido.
- Guimarães Rosa
Tão bom aqui               Me escondo no porão
para melhor aproveitar o dia
e seu plantel de cigarras.
Entrei aqui para rezar,
agradecer a Deus este conforto gigante.
Meu corpo velho descansa regalado,
tenho sono e posso dormir,
Tendo comido e bebido sem pagar.
O dia lá fora é quente,
a água na bilha é fresca,
acredito que sugestionamos elétrons.
Eu só quero saber do microcosmo,
O de tanta realidade que nem há.
Na partícula visível de poeira
Em onda invisível dança a luz.
Ao cheiro de café minhas narinas vibram,
Alguém vai me chamar.
Responderei amorosa,
Refeita de sono bom.
Fora que alguém me ama,
Eu nada sei de mim.

 Adélia Prado in: “A duração do dia”