Hotel Toffolo | |
|
|
| |
|
Um cadim de tudo que gosto, música, literatura, fotografia e outras coisinhas que me fazem feliz....
sábado, 30 de junho de 2012
sexta-feira, 29 de junho de 2012
Roda Gigante - Dércio Marques
Pesquisador e defensor da cultura popular, com certeza hoje o céu está em festa para recebê-lo, GRANDE DÉRCIO!
CANÇÃO DO OUTONO
Os soluços graves
Dos violinos suaves
Do outono
Ferem a minh'alma
Num langor de calma
E sono.
Sufocado, em ânsia,
Ai! quando à distância
Soa a hora,
Meu peito magoado
Relembra o passado
E chora.
Daqui, dali, pelo
Vento em atropelo
Seguido,
Vou de porta em porta,
Como a folha morta
Batido...
Tradução: Alphonsus de GuimaraensPaul Verlaine, "Chanson d'Automne"
In Poèmes Saturniens (1866)
Os soluços graves
Dos violinos suaves
Do outono
Ferem a minh'alma
Num langor de calma
E sono.
Sufocado, em ânsia,
Ai! quando à distância
Soa a hora,
Meu peito magoado
Relembra o passado
E chora.
Daqui, dali, pelo
Vento em atropelo
Seguido,
Vou de porta em porta,
Como a folha morta
Batido...
Tradução: Alphonsus de GuimaraensPaul Verlaine, "Chanson d'Automne"
In Poèmes Saturniens (1866)
quinta-feira, 28 de junho de 2012
O LUAR ATRAVÉS DOS ALTOS RAMOS
O luar através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.
Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.
(Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos, 1911-12)
"VALSINHA DA BANDA DE MÚSICA MUNICIPAL
Música da
Banda Euterpina
Juvenil de
Nazaré da Mata
tocando ao
luar de prata.
(O seresteiro
achando a rima
da serenata.)
Música pelo
Natal; na festa
da padroeira.
(A procissão,
Nossa Senhora
da Conceição.)
Música nos bailes
de carnaval
e em funeral.
Seu Miguel ensaiava de noite, na Rua
da Palha, para as tocatas coletivas.
Nunca mais deixei de ouvir
as suas noturnas melodias na janela.
Sinto que ele acorda e volta de longe nesta madrugada.
Limpa a farda de tempo e areia,
vem do cemitério de São Sebastião,
vem com a sua valsa de antigamente,
vem com o seu clarinete na mão."
Mauro Mota in: Itinerário
quarta-feira, 27 de junho de 2012
terça-feira, 26 de junho de 2012
"Não tenho vocação pra bailarina, tenho fobia de linha reta, tenho o corpo livre, o espírito solto, sou do mundo, das pessoas, das conquistas, das novidades, vou construindo fatos e lembranças nas esquinas. A vida que tem lá fora gritou e eu não ouvi. Agora me movo a passos curtos, ziguezagueando por entre mudas de flores recentes que querem ser botão. Eu quero ser flor: quero terra viva que se mova e me faça mover." Veronica Heiss
domingo, 24 de junho de 2012
“Delicadeza é aquilo que nos alcança sem nos tocar. É a melodia que nos embala mesmo em silêncio. É quando a boca empresta um sorriso aos olhos sem que nenhuma cobrança seja feita e os sentidos se misturam sem que ninguém dispute o melhor espaço. Delicadeza é ter pensamentos e atitudes em harmonia. É atingir o outro sem que ninguém saia machucado. É quando você é seduzido por algo que vem de dentro e dividir ajuda a somar!” Fernanda Gaona
sábado, 23 de junho de 2012
"É preciso ter olhos frescos para sermos capazes de admirar belezas aparentemente antigas. A beleza envelhece quando o olhar da gente perde o viço. Toda beleza é capaz de vestir roupa nova porque outro também é o nosso olhar. Não ignoro o so...frimento. Não banalizo as dores que a gente sente, que não são poucas. Como a maioria de nós, num único dia, visito territórios dos mais diversos sentimentos e às vezes é bem difícil experimentar alguns deles. Mas, eu acho que, à parte os embaraços do caminho, quando a gente se fecha para a beleza do mundo, a vida fica insípida." Ana Jácomo
sexta-feira, 22 de junho de 2012
Clariceando
"A vida real é um sonho, só que de olhos abertos (que veem tudo destorcido). A
vida real entra em nós em câmara lenta, inclusive o raciocínio o mais rigoroso -
é o sonho."
Clarice Lispector in: Um Sopro de Vida
Clarice Lispector in: Um Sopro de Vida
quinta-feira, 21 de junho de 2012
quarta-feira, 20 de junho de 2012
Clariceando
"Como se fosse para tirar o retrato daquele instante, ele manteve ainda o mesmo
rosto isento, como se o fotógrafo lhe pedisse apenas um rosto e não a alma." Clarice Lispector in: Laços de Família
"Eu estava ali sem nenhum plano imediato quando vi os dois homenzinhos verdes
correndo sobre o tapete.Um deles retirou do bolso um minúsculo lenço e passou-o
na testa.Pensei então que o lenço era feito de finíssimos fios e que eles deviam
ser hábeis tecelões. Ao mesmo tempo, lembrei também que
necessitava de uma longa veste: uma muito longa veste provavelmente azul.Não foi
difícil subjugá-los e obrigá-los a tecerem para mim.Trouxeram suas famílias e
levaram milênios nesse trabalho.Catástrofes incríveis: emaranhavam-se nos fios,
sufocavam no meio do pano, as agulhas os apunhalavam.Inúmeras gerações se
sucederam.Nascendo, tecendo e morrendo.Enquanto isso, minha mão direita pousava
ameaçadora sobre suas cabeças."
Caio Fernando Abreu in: 'O Ovo Apunhalado'
Caio Fernando Abreu in: 'O Ovo Apunhalado'
terça-feira, 19 de junho de 2012
"Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha
negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço
passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que
sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou
pontual para que ninguém saiba como pouca me importa o tempo alheio. Descobri,
enfim, que o amor não é um estado da alma e sim um signo do
zodíaco."
Gabriel Gárcia Marques in: Memórias de minhas putas tristes
Gabriel Gárcia Marques in: Memórias de minhas putas tristes
"Quem me consola? Quem consola você, que me lê agora e talvez sinta coisas semelhantes? Quem consola este país tristíssimo? Vim pra casa humilde. Depois, um amigo me chamou para ajudá-lo a cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui. Não por nobreza: cuidar dele faria com que eu me esquecesse de mim. E fez. Quando gemeu "dói tanto", contei da moça vadia chorando, bebendo e fumando (como num... bolero). E quando ele perguntou "porquê?", compreendi ainda mais. Falei: "Porque é daí que nascem as canções". E senti um amor imenso. Por tudo, sem pedir nada de volta. Não-ter pode ser bonito, descobri. Mas pergunto inseguro, assustado: a que será que se destina?"
(Caio Fernando Abreu in: Pequenas Epifanias)
segunda-feira, 18 de junho de 2012
“Veja, Lorena, aqui na mesa este anjinho vale tanto quanto o peso de papel sem
papel ou aquele cinzeiro sem cinza, quer dizer, não tem sentido nenhum. Quando
olhamos para as coisas, quando tocamos nelas é que começam a viver como nós,
muito mais importantes do que nós porque continuam. O cinzeiro recebe a cinza e
fica cinzeiro. O vidro pisa o papel e se impõe, esse colar que você está
enfiando... é um colar ou um terço?
-Um colar
-Podia ser um terço?
-Podia.
-Então é você que decide.
(...)
-Veja Lorena... Os objetos só têm sentido quando têm sentido, fora disso... Eles precisam ser olhados, manuseados. Como nós. Se ninguém me ama viro uma coisa ainda mais triste do que essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra, vazio, vazio” [Lygia Fagundes Telles - Os objetos]
-Um colar
-Podia ser um terço?
-Podia.
-Então é você que decide.
(...)
-Veja Lorena... Os objetos só têm sentido quando têm sentido, fora disso... Eles precisam ser olhados, manuseados. Como nós. Se ninguém me ama viro uma coisa ainda mais triste do que essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra, vazio, vazio” [Lygia Fagundes Telles - Os objetos]
“Passou por dias de puro heavy metal. Ainda podia sentir o som da bateria mudando seu ritmo cardíaco e a vibração das cordas das guitarras acelerando seus vasos sanguíneos. Não era essa a trilha sonora que havia escolhido para sua vida. Gostava de blues como fundo musical. Suavidade não faz mal a ninguém, pensou. Girou o botão dos dias, desligou-se do barulho interno. Afinal, podia ser o que bem quisesse e nesse momento, era bailarina descalça, senhora das horas. Fechou os olhos, abriu os braços e descobriu que sabia dançar.” Renata Fagundes.
domingo, 17 de junho de 2012
Do Fundo do Coração ou Love, Love, Love
“Sempre acreditei que toda vez que a gente entra numa igreja pela primeira vez, vê uma estrela cadente ou amarra no pulso uma fitinha de Nosso Senhor do Bonfim, pode fazer um pedido. Ou três. Sempre faço. Quando são três, em geral, esqueço dois. Um nunca esqueci. Um sempre pedi: amor.
Nunca tinha tido um amor. O quê? Aos 35 anos, agitando desse jeito? Explico: claro que tive dúzias e dúzias, outro dia até tentei contar e me perdi na altura do número cento e trinta e muito. Mas tudo rapidinho, assim, uma hora, um dia, uma semana, um mês, pouco mais. Nunca, digamos, UM ANO. Então quando alguém suspirava e dizia cara estou saindo de um caso de DEZ anos, meu olho arregalava de pura inveja. Histórias mais compridinhas, claro que rolaram. Maria Clara, por exemplo, mas a gente morava, eu em Sampa, ela no Rio, amor-ponte-aérea. Caríssimo. Isso, das moças. Dos moços, aquele bailarino americano em London, London, quatro/cinco meses. Talvez seis? Numa tarde de compras e roubos em Portobello Road me deu de presente um cacto (perfeito!) e me deixou plantado até hoje. Esse era amor-de-metrô, último trem entre Hammersmith e Euston. Onde andará? (“Onde andará?” é das perguntas mais tristes que conheço, sinônimo de se perdeu.)
“Sempre acreditei que toda vez que a gente entra numa igreja pela primeira vez, vê uma estrela cadente ou amarra no pulso uma fitinha de Nosso Senhor do Bonfim, pode fazer um pedido. Ou três. Sempre faço. Quando são três, em geral, esqueço dois. Um nunca esqueci. Um sempre pedi: amor.
Nunca tinha tido um amor. O quê? Aos 35 anos, agitando desse jeito? Explico: claro que tive dúzias e dúzias, outro dia até tentei contar e me perdi na altura do número cento e trinta e muito. Mas tudo rapidinho, assim, uma hora, um dia, uma semana, um mês, pouco mais. Nunca, digamos, UM ANO. Então quando alguém suspirava e dizia cara estou saindo de um caso de DEZ anos, meu olho arregalava de pura inveja. Histórias mais compridinhas, claro que rolaram. Maria Clara, por exemplo, mas a gente morava, eu em Sampa, ela no Rio, amor-ponte-aérea. Caríssimo. Isso, das moças. Dos moços, aquele bailarino americano em London, London, quatro/cinco meses. Talvez seis? Numa tarde de compras e roubos em Portobello Road me deu de presente um cacto (perfeito!) e me deixou plantado até hoje. Esse era amor-de-metrô, último trem entre Hammersmith e Euston. Onde andará? (“Onde andará?” é das perguntas mais tristes que conheço, sinônimo de se perdeu.)
Eis que de tanto pedir, insistir, acender vela, fazer todos
os feitiços para Santo Antônio e Oxum e concentrar, rezar, mentalizar, eis que
pintou. Ano passado me baixou um encosto de São Francisco de Assis, joguei
(literalmente) pela janela quase tudo que tinha e, com duas malas, parti para o
Rio. Não queria mais me prender a nada. Nem a Sampa, bem-amada. Numa ida a Porto
Alegre, em agosto, deu-se. Explosão: à primeira vista. Tudo o que dissemos,
depois de um longo suspiro de alívio, foi: eu amo você. Pasmem: verdade das
verdadeiras. Ousadias do coração que saca, na hora, a intensidade do lance. E
não disfarça. Bueno, tinha pintado.
Então tá. Romance comme il faut: dias numa casinha no meio de bosques em Gramado. Depois a volta ao Rio e, como dizia Ana Cristina Cesar (Aninha, Ana C., a bela, que falta você me faz menina fujona!), “amizade nova com o carteiro do Brasil”. Laudas e laudas de cartas de amor, uma por dia, duas por dia, dez por dia. Fotos, poemas, juras interurbanas. Voltei. Nós fomos os dois para o Rio. Dois meses lá: o amor resistia, mas nenhum estava a fim de pegar no pesado. Então fazer o quê? Dividir quarto pensão na Lapa, andar de ônibus, comer espiga de milho e misto quente? Nenhum acreditava em teu-amor-e-uma-cabana, também não era preciso teu-amor-e-um-rolls-royce (seria ótimo), mas pelo menos uma vitrolinha para fazer amor ao som do Bolero, de Ravel (amor tem desses lugares-comuns quase inconfessáveis). Voltamos. Verão em Torres. Camas de trinta horas. Passeios. Dunas, praia da Guarita. Filme. A sunga verde de lycra.
Então tá. Romance comme il faut: dias numa casinha no meio de bosques em Gramado. Depois a volta ao Rio e, como dizia Ana Cristina Cesar (Aninha, Ana C., a bela, que falta você me faz menina fujona!), “amizade nova com o carteiro do Brasil”. Laudas e laudas de cartas de amor, uma por dia, duas por dia, dez por dia. Fotos, poemas, juras interurbanas. Voltei. Nós fomos os dois para o Rio. Dois meses lá: o amor resistia, mas nenhum estava a fim de pegar no pesado. Então fazer o quê? Dividir quarto pensão na Lapa, andar de ônibus, comer espiga de milho e misto quente? Nenhum acreditava em teu-amor-e-uma-cabana, também não era preciso teu-amor-e-um-rolls-royce (seria ótimo), mas pelo menos uma vitrolinha para fazer amor ao som do Bolero, de Ravel (amor tem desses lugares-comuns quase inconfessáveis). Voltamos. Verão em Torres. Camas de trinta horas. Passeios. Dunas, praia da Guarita. Filme. A sunga verde de lycra.
De repente uma luzinha vermelha começou, cigarro no escuro,
a piscar dentro de mim. Foi no carnaval que passou. Suspeitas: porra, eu me
afastei de tudo, de todos, joguei tudo pro alto e só quero esse amor, nada mais
me interessa, se esse amor me faltar (pode?) eu só tenho isso, é o único laço
que me prende à vida - e se faltar, Deus, se faltar o que faço? Noites
paranóicas, medo Ritchie. E… se dançar? Aí dançou. Foi dançando. Não sei bem
como. Uma tarde peguei nas suas mãos e, bem cruel (punhais: como a gente sabe
apunhalar com engenho e arte, crava devagarinho a lâmina, depois revira, dentro
da ferida), pedi assim: olha bem dentro dos meus olhos e me responde à seguinte
pergunta: “Você não me ama mais?”.
Silêncio tão espesso que consegui ouvir o ruído do movimento de rotação da Terra. Feito nas novelas das seis, eu abri a boca quando ouvi a resposta. Um lento Não. Um claro Não. Um seguro Não. Um límpido Não. Um tranquilo Não. Um sem dúvida alguma Não. Um afirmativo Não. Repete, pedi. Repetiu. Pede-se não enviar flores, pensei. Fechei a porta. Fiquei só, chovia. Com requintes de autopiedade, limpei devagarinho com feltro um disco da Elis, deitei no chão e ouvi umas cem vezes “Se quiser falar com Deus”. Quando já ia abrir o gás, corri para o telefone e pedi ao Zé Márcio Penido em Sampa: socorro. Vem, ele disse. Santo amigo. Fui, na mesma hora. Me estonteei, vi todos os filmes, todas as peças, revi todos os amigos, ouvi todos os discos, namorei o que deu. Tinham sido NOVE MESES de fidelidade, no amor-amor, é sempre supernatural. Quando decidi estou-ótimo-fullgás-total-posso-voltar, voltei. The reencontro: quando dei por mim estava dizendo as coisas mais duras e agressivas e cruéis e impiedosas e injustas e ferinas e baixas e grossas que uma pessoa pode dizer à outra.
Silêncio tão espesso que consegui ouvir o ruído do movimento de rotação da Terra. Feito nas novelas das seis, eu abri a boca quando ouvi a resposta. Um lento Não. Um claro Não. Um seguro Não. Um límpido Não. Um tranquilo Não. Um sem dúvida alguma Não. Um afirmativo Não. Repete, pedi. Repetiu. Pede-se não enviar flores, pensei. Fechei a porta. Fiquei só, chovia. Com requintes de autopiedade, limpei devagarinho com feltro um disco da Elis, deitei no chão e ouvi umas cem vezes “Se quiser falar com Deus”. Quando já ia abrir o gás, corri para o telefone e pedi ao Zé Márcio Penido em Sampa: socorro. Vem, ele disse. Santo amigo. Fui, na mesma hora. Me estonteei, vi todos os filmes, todas as peças, revi todos os amigos, ouvi todos os discos, namorei o que deu. Tinham sido NOVE MESES de fidelidade, no amor-amor, é sempre supernatural. Quando decidi estou-ótimo-fullgás-total-posso-voltar, voltei. The reencontro: quando dei por mim estava dizendo as coisas mais duras e agressivas e cruéis e impiedosas e injustas e ferinas e baixas e grossas que uma pessoa pode dizer à outra.
Comecei a me perder pela cidade. Selecionei vinte gatos
& gatas mais lindos do pedaço, dez semifinalistas, cinco finalistas, transei
todos. Saí sem parar. De bar em bar, telefone tocando sem parar. Explodindo de
vitalidade e saúde e sedução: capacidade de superação. Puxa, gente, como sou
maravilhoso, como sou maduro e equilibrado, como sei dar a volta por cima, como
não sou careta, como sou moderno e liberadésimo. Aí, desabou. Dez dias. De manhã
bem cedo, chegando da vida, percebi uma pequena rachadura na parede externa do
edifício. Avançava lentissimamente. Ao meio-dia rachou de alto a baixo. O
edifício veio ao chão: me interna, pedi pra mãe, estou infeliz pra caralho.
Peguei o pacote de cartas que tinha pedido de volta (fiz absolutamente todos os
números, o problema é que a plateia estava vazia: ninguém aplaudiu minha melhor
sequência de sapateado), coloquei aos pés de Ogum.
E agora, Caio F.? Agora, estou amanhecendo. Ah, me digo,
então era assim. Essa coisa, o amor. Já conheço? Já conheço. Mas como é mesmo
que se chama? Também não estou certo se estarei mesmo amanhecendo. Talvez, sim,
anoitecendo, essas luzes penumbrosas são muito parecidas. Não sei muita coisa.
Quase nada. Pedi? Levei. Nunca tinha sido tão intenso, nem tão bonito. Nunca
tinha tido um jeito assim, tão forever. Não me diga que vai passar, vai passar,
vai passar, vai passar. Não me diga que foi ótimo, o que você queria, a
eternidade? Não me peça para não te encher o saco lamuriando. Posso não saber
nada do coração das gentes, mas tenho a impressão, de que, de tudo, o pior é
quando entra a segunda parte da letra de “Atrás da porta”, ali no quando “dei
pra maldizer o nosso lar pra sujar teu nome, te humilhar”. Chico Buarque é ótimo
pra essas coisas. Billie Holiday é ótima pra essas coisas. E Drummond quando
ensina que “o amor, caro colega, esse não consola nunca de núncaras”. Aí você
saca que toda música, toda letra, todo poema, todo filme, toda peça, todo papo,
todo romance, tudo e todos o tempo todo, antes, agora e depois, falam disso. Que
o que você sente é único & indivisível e é exatamente igual à dor coletiva,
da Rocinha a Biarritz. O coro de anjos de Antunes Filho levanta no ar, em
triunfo, os corpos mortos de Romeu e Julieta enquanto os Beatles pedem um little
help from my friends, e a plateia ainda aplaude de pede bis (o Gonzaguinha
também é ótimo pra essas coisas). Meus amigos, abandonados para que eu pudesse
mergulhar, voltaram a mil. Tem seus prazeres o fim do amor. Se é patologia,
invenção cristã-judaico-ocidental-capitalista, ou maya, ego, se é babaquice,
piração, se mudou-através-dos-tempos, puro sexo, carência, medo da morte: não
interessa. Tenho certeza que estive lá, naquele terreno. Ele existe.
Por isso falo dele: Joyce e Paula me pediram elucubrações,
as minhas são estas. Estou contando a vocês que estou fazendo elucubrações sobre
o amor porque provavelmente, de uma outra forma vocês aí que me leem, talvez com
tédio, também estão pensando a mesma coisa. O bicho homem não faz outra coisa a
não ser pensar no amor. Até as relações de produção, a luta de classes, a
ecologia, o jogo pelo poder: tudo, questão de amor. Formas de amor. Amor é
palavra que inventamos para dar nome ao Sol abstrato em torno do qual giram
nossos pequeninos egos ofuscados, entontecidos, ritmados. A vida toda. Mas se me
perguntarem o que quero dizer com isso, não tenho resposta.
O que quero dizer é justamente o que estou dizendo. Não estou com pena de mim. Tá tudo bem. Tenho tomado banho, cortado as unhas, escovado os dentes, bebido leite. Meu coração continua batendo - taquicárdico, como sempre. Dá licença, Bob Dylan: it’s all right man, I’m just bleeding. Tá limpo. Sem ironias. Sem engano. Amanhã, depois, acontece de novo, não fecho nada, não fechamos nada, continuamos vivos e atrás da felicidade, a próxima vez vai ser ainda quem sabe mais celestial que desta, mais infernal também, pode ser, deixa pintar. Se tiver aprendido lições (amor é pedagógico?), até aproveito e não faço tanta besteira. Mas acho que amor não é cursinho pré-vestibular. Ninguém encontra seu nome no listão dos aprovados. A gente só fica assim. Parado olhando a medida do Bonfim no pulso esquerdo, lado do coração e pensando, pois é, vejam só, não me valeu.”
O que quero dizer é justamente o que estou dizendo. Não estou com pena de mim. Tá tudo bem. Tenho tomado banho, cortado as unhas, escovado os dentes, bebido leite. Meu coração continua batendo - taquicárdico, como sempre. Dá licença, Bob Dylan: it’s all right man, I’m just bleeding. Tá limpo. Sem ironias. Sem engano. Amanhã, depois, acontece de novo, não fecho nada, não fechamos nada, continuamos vivos e atrás da felicidade, a próxima vez vai ser ainda quem sabe mais celestial que desta, mais infernal também, pode ser, deixa pintar. Se tiver aprendido lições (amor é pedagógico?), até aproveito e não faço tanta besteira. Mas acho que amor não é cursinho pré-vestibular. Ninguém encontra seu nome no listão dos aprovados. A gente só fica assim. Parado olhando a medida do Bonfim no pulso esquerdo, lado do coração e pensando, pois é, vejam só, não me valeu.”
*Texto de Caio Fernando Abreu na revista Around, por volta
de 1985. Retirado do livro “Para sempre teu, Caio F.”, de Paula Dip.
sábado, 16 de junho de 2012
A VOZ E O ESPELHO
(sobre um paradoxo de Octavio Paz)
(sobre um paradoxo de Octavio Paz)
Tu presencia me deshabita:
saio a esmo
sem medida do mesmo
no ermo de mim:
faço-me diversa
convexo-me em ti
no reverso
onde me perco
revejo-me, reescrita
e recomeço, inversa
embora a mesma
mas ao medir-me
não mais te vejo
e no instante
do espelho finito
reflito:
sem medida do mesmo
no ermo de mim:
faço-me diversa
convexo-me em ti
no reverso
onde me perco
revejo-me, reescrita
e recomeço, inversa
embora a mesma
mas ao medir-me
não mais te vejo
e no instante
do espelho finito
reflito:
tu ausência me habita.
Maria Esther Maciel In: OIRO DE MINAS
sexta-feira, 15 de junho de 2012
Clariceando
"Tenho em mim, objeto que sou, um toque de santidade enigmática."
Clarice Lispector In: Um Sopro de Vida
Clarice Lispector In: Um Sopro de Vida
"Não quero mais a realidade comum. isso é o que mais cansa, pra ser bem sincera.
tenho até arrepios de pensar num futuro escrito e óbvio nas prateleiras de gente
sem sal. só de saber o que vai ser de mim, já quero ser outra coisa. uma coisa
nova e diferente, pra quebrar o que é certo."
Verônica Heiss.
Verônica Heiss.
quinta-feira, 14 de junho de 2012
quarta-feira, 13 de junho de 2012
terça-feira, 12 de junho de 2012
“O amor nos tira o sono, nos tira do sério, tira o tapete debaixo dos nossos pés, faz com que nos defrontemos com medos e fraquezas aparentemente superados, mas também com insuspeitada audácia e generosidade. E como habitualmente tem um fim - que é dor - complica a vida. Por outro lado, é um maravilhoso ladrão da nossa arrogância. Quem nos quiser amar agora terá de vir com calma, terá de vir com jeito. Somos um território mais difícil de invadir, porque levantamos muros, inseguros de nossas forças disfarçamos a fragilidade com altas torres e ares imponentes. A maturidade me permite olhar com menos ilusões, aceitar com menos sofrimento, entender com mais tranqüilidade, querer com mais doçura. Às vezes é preciso recolher-se.”
— | Lya Luft. |
segunda-feira, 11 de junho de 2012
sexta-feira, 8 de junho de 2012
terça-feira, 5 de junho de 2012
segunda-feira, 4 de junho de 2012
Um sino, um rio, um pontilhão, e um carro
De três juntas bovinas que ia e vinha
Rinchando alegre, carregando barro.
-
Havia a escola, que era azul e tinha
Um mestre mau, de assustador pigarro…
(Meu Deus! que é isto? que emoção a minha
Quando essas cousas tão singelas narro?)
-
Seu Alexandre um bom velhinho rico
Que hospedara a Princesa; o tico-tico
Que me acordava de manhã, e a serra…
-
Com o seu nome de amor Boa Esperança,
Eis tudo quanto guardo na lembrança
Da minha pobre e pequenina terra!
B. Lopes em: Poesia Brasileira para a Infância, Cassiano Nunes e Mário da Silva Brito,
-
O tropeiro na escadinha de São Chico de Baixo, década de 1980
Alberto Braga
-
-
De três juntas bovinas que ia e vinha
Rinchando alegre, carregando barro.
-
Havia a escola, que era azul e tinha
Um mestre mau, de assustador pigarro…
(Meu Deus! que é isto? que emoção a minha
Quando essas cousas tão singelas narro?)
-
Seu Alexandre um bom velhinho rico
Que hospedara a Princesa; o tico-tico
Que me acordava de manhã, e a serra…
-
Com o seu nome de amor Boa Esperança,
Eis tudo quanto guardo na lembrança
Da minha pobre e pequenina terra!
B. Lopes em: Poesia Brasileira para a Infância, Cassiano Nunes e Mário da Silva Brito,
-
O tropeiro na escadinha de São Chico de Baixo, década de 1980
Alberto Braga
-
-
"- Pense bem, Visconde. A tal "civilização clássica" estava chegando ao fim. Os homens não viam outra solução além da guerra- isto é, matar, matar, matar, destruir todas as coisas criadas pela própria civilização- as cidades, as fábricas, os navios, tudo. Pense bem, Visconde. Essa tal civilização havia falhado. Havia enveredado por um beco sem saída- e a saída que achava qual era? Suicidar-se a tiros de canhão. Ora bolas! Eu até me admiro de ver um sábio com um cartolão desse tamanho defender um mundo de ditadores, cada qual pior que o outro."
( Monteiro Lobato in: A Chave do Tamanho)
domingo, 3 de junho de 2012
(...) abre o guarda chuva que hoje o sol desistiu de sair
(...)
Cantei pra você meus velhos tons,
Perdi seu ouvido pro jornal.
Eu trago a dança que me inspirou o café sem açúcar e
tal
Analise o fundo da xícara, a esperança é igual.
Eu confesso só me resta a vida inteira.
Só me resta vida em mi maior e lá!
Tiê - sweet jardim
(...)
Cantei pra você meus velhos tons,
Perdi seu ouvido pro jornal.
Eu trago a dança que me inspirou o café sem açúcar e
tal
Analise o fundo da xícara, a esperança é igual.
Eu confesso só me resta a vida inteira.
Só me resta vida em mi maior e lá!
Tiê - sweet jardim
"Eu te desejo, muitos amigos
Mas que em um você possa confiar
E que tenha até inimigos
Pra você não deixar de duvidar
Quando você ficar triste
Que seja por um dia, e não o ano inteiro
E que você descubra que rir é bom,
mas que rir de tudo é desespero
Desejo que você tenha quem amar
E quando estiver bem cansado
Ainda, exista amor pra recomeçar"
Frejat - amor pra recomeçar
Mas que em um você possa confiar
E que tenha até inimigos
Pra você não deixar de duvidar
Quando você ficar triste
Que seja por um dia, e não o ano inteiro
E que você descubra que rir é bom,
mas que rir de tudo é desespero
Desejo que você tenha quem amar
E quando estiver bem cansado
Ainda, exista amor pra recomeçar"
Frejat - amor pra recomeçar
" Que não nos faltem bons sentimentos. Que nos falte egoísmo. Que nos
sobre paciência. Que sejamos capazes de enxergar algo de bom em cada momento
ruim que nos acontecer. Que não nos falte esperança. Que novos amigos
cheguem. Que antigos sejam reencontrados. Que cada caminho escolhido nos reserve
boas surpresas. Que a cada sorriso que uma criança der nos faça ter um bom dia e
enxergar uma nova esperança. Que cada um de nós saiba ouvir cada conselho dado
por uma pessoa mais velha. Que não nos falte vontade de sorrir. Que sejamos
leves. Que sejamos livres de preconceitos. Que nenhum de nós se esqueça da força
que possui. Que não nos falte fé e amor. " Caio Fernando Abreu
sábado, 2 de junho de 2012
Crônica - Carlos Chega ao Céu
E olhando aquele nuvenzal
todo, comenta: Gente, não é
que virei mesmo eterno?
Lá no céu, Cecília Meireles acorda cedinho. Mais cedo ainda do que de costume, que ela gosta de espiar os querubins tontinhos de sono. Mas hoje é dia especial. Cecília prende os cabelos, depois toma sua homeopatia (será Dulcamara? Daqui não dá pra ver - pode até ser Stramonium) e lava devagar o rosto na água do arco-íris. Bebe seu chazinho de pétalas de rosa branca - amarela não, que dá azia. Escova devagar as asas, pluma por pluma. Só depois de bem bonita é que bate de leve na porta da nuvem ao lado. Dentro, um resmungo mal-humorado.
É Vinícius de Moraes, que virou a noite com o arcanjo Gabriel, conhecendo as bocas da zona da Ursa Maior, aquela louca pirada. Mesmo de ressaca, o Poetinha acorda. "É hoje" - sussurra Cecília na janela que Vinícius se espreguiça: "Ô xará, não é que é mesmo hoje" E vai correndo se aprontar.
De braços dados, os dói vão bater à porta da nuvem de Manuel Bandeira. Mas nem era preciso. Manuel á está aceso, debruçado na janela, o nariz um pouco vermelho, fungando e tomando café quente que Irene acabou de prepara. "É hoje" - dizem Cecília e Vinícius. Manuel funga: "E eu não sei, gente? Daqui a pouquinho". Os três ficam em silêncio, o coração deles começa a bater no mesmo compasso (dodecassílabo? Daqui não dá para ouvir direito) então eles olham para baixo, em direção ao planeta Terra, que gira e gira, meio bobo de tão azul.
Aí uma nuvem dourada lá embaixo começa a ficar cada vez mais dourada, a chegar cada vez mais perto. Brilha tanto que os três quase se assustam, até reconheceram São Pedro na direção. Que pena, não dá mais tempo de chamar Pedro Nava. A nuvem aterrissa, São Pedro abre a porta. Um pouco encabulado, atrapalhado com as asas, cabeça baixa. Carlos Drummond de Andrade desce e põe os pés no céu. "Não é que virei mesmo eterno?" - comenta, olhando aquele nuvenzal todo. Então vê os três. Tanto tempo, pois é, tanto tempo, pensei que nem vinha mais.
Cecília, você não mudou nada, e essa barriga, Poetinha? Não toma jeito, curou a tosse, Bandeira? Tá mais magro, Carlos, e a Dolores? Vai bem, mandou lembranças, qualquer dia chega por aqui. Irene traz mais café, bem preto, bem forte. Vinícius dá um jeitinho de virar no café uma talagada de uísque da garrafinha que carrega sempre, disfarçada sob a asa esquerda. Os quatro brindam, olhos molhados de saudade satisfeita.
Depois olham pro mundo aqui de baixo, que girar e gira, todo azul, assim de longe, e esperam um pouquinho, enquanto bebem o café, até conseguirem localizar, entre nuvens, a América do Sul. Custa um pouco para encontrarem , quase no extremo sul dessa América, um pontinho luminoso chamado Porto Alegre e, bem no centro do coração dessa cidade, um velhinho de cara sapeca, parado em frente a um porta-retratos com a foto da Bruna Lombardi. É o Mário Quintana - eles sabem - ou será o Anjo Malaquias? (isso nunca ninguém soube). Cecília, Vinícius, Manuel e Carlos sorriem mansinho, espiando Mário lá do céu, lá de cima.
Mas a Terra - tão azul assim, vista de longe, vista de cima - eles olham com pena. Sabem que pelo menos metade desse azul todo, depois que eles se foram, brota dali, do quartinho do Mário. Aí suspiram, tadinho, que barra! Um anjo torto vem pedir autógrafo de Carlos. "desguia" - avisa Vinícius. - "Um chato, maior aluguel". Carlos pergunta de Maria Julieta, Manuel diz que leva ele até lá. Cecília tem um almoço com Clarice e Ana Cristina. Vinícius não sabe se dorme mais um pouco ou se pega o Leon Eliachar para irem até a casa de Elis - será que já acordou, a diaba? - tá com samba novo na cabeça, precisa cruzar com a Clementina.
Cá embaixo, no centro do coração gelado do pontinho luminoso chamado Porto Alegre, pleno agosto, Mário Quintana abre a janela, olha para cima e dá uma piscadinha.
Danados, pensa, que danadinhos. O dia parece tão cinzento que não resiste à tentação de escrever um poema. Bem curtinho, bem feliz. Entre lá e cá, girando e girando sem parar, feito louca.
A Terra também não resiste. De puro gosto, fica ainda mais azul - você viu?
(O Estado de São Paulo, 26/8/1987 - Pequenas Epifanias)
todo, comenta: Gente, não é
que virei mesmo eterno?
Lá no céu, Cecília Meireles acorda cedinho. Mais cedo ainda do que de costume, que ela gosta de espiar os querubins tontinhos de sono. Mas hoje é dia especial. Cecília prende os cabelos, depois toma sua homeopatia (será Dulcamara? Daqui não dá pra ver - pode até ser Stramonium) e lava devagar o rosto na água do arco-íris. Bebe seu chazinho de pétalas de rosa branca - amarela não, que dá azia. Escova devagar as asas, pluma por pluma. Só depois de bem bonita é que bate de leve na porta da nuvem ao lado. Dentro, um resmungo mal-humorado.
É Vinícius de Moraes, que virou a noite com o arcanjo Gabriel, conhecendo as bocas da zona da Ursa Maior, aquela louca pirada. Mesmo de ressaca, o Poetinha acorda. "É hoje" - sussurra Cecília na janela que Vinícius se espreguiça: "Ô xará, não é que é mesmo hoje" E vai correndo se aprontar.
De braços dados, os dói vão bater à porta da nuvem de Manuel Bandeira. Mas nem era preciso. Manuel á está aceso, debruçado na janela, o nariz um pouco vermelho, fungando e tomando café quente que Irene acabou de prepara. "É hoje" - dizem Cecília e Vinícius. Manuel funga: "E eu não sei, gente? Daqui a pouquinho". Os três ficam em silêncio, o coração deles começa a bater no mesmo compasso (dodecassílabo? Daqui não dá para ouvir direito) então eles olham para baixo, em direção ao planeta Terra, que gira e gira, meio bobo de tão azul.
Aí uma nuvem dourada lá embaixo começa a ficar cada vez mais dourada, a chegar cada vez mais perto. Brilha tanto que os três quase se assustam, até reconheceram São Pedro na direção. Que pena, não dá mais tempo de chamar Pedro Nava. A nuvem aterrissa, São Pedro abre a porta. Um pouco encabulado, atrapalhado com as asas, cabeça baixa. Carlos Drummond de Andrade desce e põe os pés no céu. "Não é que virei mesmo eterno?" - comenta, olhando aquele nuvenzal todo. Então vê os três. Tanto tempo, pois é, tanto tempo, pensei que nem vinha mais.
Cecília, você não mudou nada, e essa barriga, Poetinha? Não toma jeito, curou a tosse, Bandeira? Tá mais magro, Carlos, e a Dolores? Vai bem, mandou lembranças, qualquer dia chega por aqui. Irene traz mais café, bem preto, bem forte. Vinícius dá um jeitinho de virar no café uma talagada de uísque da garrafinha que carrega sempre, disfarçada sob a asa esquerda. Os quatro brindam, olhos molhados de saudade satisfeita.
Depois olham pro mundo aqui de baixo, que girar e gira, todo azul, assim de longe, e esperam um pouquinho, enquanto bebem o café, até conseguirem localizar, entre nuvens, a América do Sul. Custa um pouco para encontrarem , quase no extremo sul dessa América, um pontinho luminoso chamado Porto Alegre e, bem no centro do coração dessa cidade, um velhinho de cara sapeca, parado em frente a um porta-retratos com a foto da Bruna Lombardi. É o Mário Quintana - eles sabem - ou será o Anjo Malaquias? (isso nunca ninguém soube). Cecília, Vinícius, Manuel e Carlos sorriem mansinho, espiando Mário lá do céu, lá de cima.
Mas a Terra - tão azul assim, vista de longe, vista de cima - eles olham com pena. Sabem que pelo menos metade desse azul todo, depois que eles se foram, brota dali, do quartinho do Mário. Aí suspiram, tadinho, que barra! Um anjo torto vem pedir autógrafo de Carlos. "desguia" - avisa Vinícius. - "Um chato, maior aluguel". Carlos pergunta de Maria Julieta, Manuel diz que leva ele até lá. Cecília tem um almoço com Clarice e Ana Cristina. Vinícius não sabe se dorme mais um pouco ou se pega o Leon Eliachar para irem até a casa de Elis - será que já acordou, a diaba? - tá com samba novo na cabeça, precisa cruzar com a Clementina.
Cá embaixo, no centro do coração gelado do pontinho luminoso chamado Porto Alegre, pleno agosto, Mário Quintana abre a janela, olha para cima e dá uma piscadinha.
Danados, pensa, que danadinhos. O dia parece tão cinzento que não resiste à tentação de escrever um poema. Bem curtinho, bem feliz. Entre lá e cá, girando e girando sem parar, feito louca.
A Terra também não resiste. De puro gosto, fica ainda mais azul - você viu?
(O Estado de São Paulo, 26/8/1987 - Pequenas Epifanias)
Assinar:
Postagens (Atom)