Acorrentados
"Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e
estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a
quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho;
quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia;
quem se detém no caminho para ver melhor a flor
silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao
estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem
procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar
pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros;quem
coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez
minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do
noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra
em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens;
quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência;
quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata
em sorriso à visão de uma cascata ; quem leva a sério os transatlânticos
que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou
infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena
da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o
pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão
por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha
terrestre." Paulo Mendes Campos
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