''Minas não é palavra montanhosa.
É palavra abissal. Minas é dentro
E fundo”
Carlos Drummond de Andrade
Gente, simplificar é um pecado. Se a vida não fosse tão corrida, se não tivesse tanta
conta para pagar, tantos processos — oh sina — para analisar, eu fundaria um
partido cuja luta seria descobrir as falas de cada região do Brasil.
Cadê os lingüistas deste país? Sinto falta de um tratado geral das sotaques
brasileiros. Não há nada que me fascine mais. Como é que as montanhas, matas ou mares
influem tanto, e determinam a cadência e a sonoridade das palavras?
É um absurdo. Existem livros sobre tudo; não tem (ou não conheço) um sobre o falar
ingênuo deste povo doce. Escritores, ô de casa, cadê vocês? Escrevam sobre isto, se
já escreveram me mandem, que espero ansioso.
Um simples" mas" é uma coisa no Rio Grande do Sul. É tudo menos um
"mas" nordestino, por exemplo. O sotaque das mineiras deveria ser ilegal, imoral
ou engordar. Porque, se tudo que é bom tem um desses horríveis efeitos colaterais, como
é que o falar, sensual e lindo (das mineiras) ficou de fora?
Porque, Deus, que sotaque! Mineira devia nascer com tarja preta avisando: ouvi-la faz mal
à saúde. Se uma mineira, falando mansinho, me pedir para assinar um contrato doando tudo
que tenho, sou capaz de perguntar: só isso? Assino achando que ela me faz um favor.
Eu sou suspeitíssimo. Confesso: esse sotaque me desarma. Certa vez quase propus casamento
a uma menina que me ligou por engano, só pelo sotaque.
Mas, se o sotaque desarma, as expressões são um capítulo à parte. Não vou exagerar,
dizendo que a gente não se entende... Mas que é algo delicioso descobrir, aos poucos, as
expressões daqui, ah isso é...
Os mineiros têm um ódio mortal das palavras completas. Preferem, sabe-se lá por que,
abandoná-las no meio do caminho (não dizem: pode parar, dizem: "pó parar".
Não dizem: onde eu estou?, dizem: "ôndôtô?"). Parece que as palavras, para
os mineiros, são como aqueles chatos que pedem carona. Quando você percebe a roubada,
prefere deixá-los no caminho.
Os não-mineiros, ignorantes nas coisas de Minas, supõem, precipitada e levianamente, que
os mineiros vivem — lingüisticamente falando — apenas de uais, trens e sôs.
Digo-lhes que não.
Mineiro não fala que o sujeito é competente em tal ou qual atividade. Fala que ele é
bom de serviço. Pouco importa que seja um juiz, um jogador de futebol ou um ator de filme
pornô. Se der no couro — metaforicamente falando, claro — ele é bom de
serviço. Faz sentido...
Mineiras não usam o famosíssimo tudo bem. Sempre que duas mineiras se encontram, uma
delas há de perguntar pra outra: "cê tá boa?" Para mim, isso é pleonasmo.
Perguntar para uma mineira se ela tá boa, é como perguntar a um peixe se ele sabe nadar.
Desnecessário.
Há outras. Vamos supor que você esteja tendo um caso com uma mulher casada. Um amigo
seu, se for mineiro, vai chegar e dizer: — Mexe com isso não, sô (leia-se: sai
dessa, é fria, etc).
O verbo "mexer", para os mineiros, tem os mais amplos significados. Quer dizer,
por exemplo, trabalhar. Se lhe perguntarem com o que você mexe, não fique ofendido.
Querem saber o seu ofício.
Os mineiros também não gostam do verbo conseguir. Aqui ninguém consegue nada. Você
não dá conta. Sôcê (se você) acha que não vai chegar a tempo, você liga e diz:
— Aqui, não vou dar conta de chegar na hora, não, sô.
Esse "aqui" é outro que só tem aqui. É antecedente obrigatório, sob pena de
punição pública, de qualquer frase. É mais usada, no entanto, quando você quer falar
e não estão lhe dando muita atenção: é uma forma de dizer, olá, me escutem, por
favor. É a última instância antes de jogar um pão de queijo na cabeça do
interlocutor.
Mineiras não dizem "apaixonado por". Dizem, sabe-se lá por que,
"apaixonado com". Soa engraçado aos ouvidos forasteiros. Ouve-se a toda hora:
"Ah, eu apaixonei com ele...". Ou: "sou doida com ele" (ele, no caso,
pode ser você, um carro, um cachorro). Elas vivem apaixonadas com alguma coisa.
Que os mineiros não acabam as palavras, todo mundo sabe. É um tal de bonitim, fechadim,
e por aí vai. Já me acostumei a ouvir: "E aí, vão?". Traduzo: "E aí,
vamos?". Não caia na besteira de esperar um "vamos" completo de uma
mineira. Não ouvirá nunca.
Na verdade, o mineiro é o baiano lingüístico. A preguiça chegou aqui e armou rede. O
mineiro não pronuncia uma palavra completa nem com uma arma apontada para a cabeça.
Eu preciso avisar à língua portuguesa que gosto muito dela, mas prefiro, com todo
respeito, a mineira. Nada pessoal. Aqui certas regras não entram. São barradas pelas
montanhas. Por exemplo: em Minas, se você quiser falar que precisa ir a um lugar, vai
dizer:
— Eu preciso de ir.
Onde os mineiros arrumaram esse "de", aí no meio, é uma boa pergunta. Só não
me perguntem. Mas que ele existe, existe. Asseguro que sim, com escritura lavrada em
cartório. Deixa eu repetir, porque é importante. Aqui em Minas ninguém precisa ir a
lugar nenhum. Entendam... Você não precisa ir, você "precisa de ir". Você
não precisa viajar, você "precisa de viajar". Se você chamar sua filha para
acompanhá-la ao supermercado, ela reclamará:
— Ah, mãe, eu preciso de ir?
No supermercado, o mineiro não faz muitas compras, ele compra um tanto de coisa. O
supermercado não estará lotado, ele terá um tanto de gente. Se a fila do caixa não
anda, é porque está agarrando lá na frente. Entendeu? Deus, tenho que explicar tudo.
Não vou ficar procurando sinônimo, que diabo. E não digo mais nada, leitor, você está
agarrando meu texto. Agarrar é agarrar, ora!
Se, saindo do supermercado, a mineirinha vir um mendigo e ficar com pena, suspirará:
— Ai, gente, que dó.
É provável que a essa altura o leitor já esteja apaixonado pelas mineiras. Eu aviso que
vá se apaixonar na China, que lá está sobrando gente. E não vem caçar confusão pro
meu lado.
Porque, devo dizer, mineiro não arruma briga, mineiro "caça confusão". Se
você quiser dizer que tal sujeito é arruaceiro, é melhor falar, para se fazer
entendido, que ele "vive caçando confusão".
Para uma mineira falar do meu desempenho sexual, ou dizer que algo é muitíssimo bom
(acho que dá na mesma), ela, se for jovem, vai gritar: "Ô, é sem noção".
Entendeu, leitora? É sem noção! Você não tem, leitora, idéia do tanto de bom que é.
Só não esqueça, por favor, o "Ô" no começo, porque sem ele não dá para
dar noção do tanto que algo é sem noção, entendeu?
Ouço a leitora chiar:
— Capaz...
Vocês já ouviram esse "capaz"? É lindo. Quer dizer o quê? Sei lá, quer
dizer "tá fácil que eu faça isso", com algumas toneladas de ironia. Gente,
ando um péssimo tradutor. Se você propõe a sua namorada um sexo a três (com as amigas
dela), provavelmente ouvirá um "capaz..." como resposta. Se, em vingança
contra a recusa, você ameaçar casar com a Gisele Bundchen, ela dirá: "ô dó
dôcê". Entendeu agora?
Não? Deixa para lá. É parecido com o "nem...". Já ouviu o
"nem..."? Completo ele fica:
- Ah, nem...
O que significa? Significa, amigo leitor, que a mineira que o pronunciou não fará o que
você propôs de jeito nenhum. Mas de jeito nenhum. Você diz: "Meu amor, cê anima
de comer um tropeiro no Mineirão?". Resposta: "nem..." Ainda não
entendeu? Uai, nem é nem. Leitor, você é meio burrinho ou é impressão?
A propósito, um mineiro não pergunta: "você não vai?". A pergunta,
mineiramente falando, seria: "cê não anima de ir"? Tão simples. O resto do
Brasil complica tudo. É, ué, cês dão umas volta pra falar os trem...
Certa vez pedi um exemplo e a interlocutora pensou alto:
— Você quer que eu "dou" um exemplo...
Eu sei, eu sei, a gramática não tolera esses abusos mineiros de conjugação. Mas que
são uma gracinha, ah isso lá são.
Ei, leitor, pára de babar. Que coisa feia. Olha o papel todo molhado. Chega, não conto
mais nada. Está bem, está bem, mas se comporte.
Falando em "ei...". As mineiras falam assim, usando, curiosamente, o
"ei" no lugar do "oi". Você liga, e elas atendem lindamente:
"eiiii!!!", com muitos pontos de exclamação, a depender da saudade...
Tem tantos outros... O plural, então, é um problema. Um lindo problema, mas um problema.
Sou, não nego, suspeito. Minha inclinação é para perdoar, com louvor, os deslizes
vocabulares das mineiras.
Aliás, deslizes nada. Só porque aqui a língua é outra, não quer dizer que a oficial
esteja com a razão. Se você, em conversa, falar:
— Ah, fui lá comprar umas coisas...
— Que' s coisa? — ela retrucará.
Acreditam? O plural dá um pulo. Sai das coisas e vai para o que.
Ouvi de uma menina culta um "pelas metade", no lugar de "pela metade".
E se você acusar injustamente uma mineira, ela, chorosa, confidenciará:
— Ele pôs a culpa "ni mim".
A conjugação dos verbos tem lá seus mistérios, em Minas... Ontem, uma senhora
docemente me consolou: "preocupa não, bobo!". E meus ouvidos, já acostumados
às ingênuas conjugações mineiras. nem se espantam. Talvez se espantassem se ouvissem
um: "não se preocupe", ou algo assim. A fórmula mineira é sintética. e diz
tudo.
Até o tchau. em Minas. é personalizado. Ninguém diz tchau pura e simplesmente. Aqui se
diz: "tchau pro cê", "tchau pro cês". É útil deixar claro o
destinatário do tchau. O tchau, minha filha, é prôcê, não é pra outra entendeu?
Deve haver, por certo, outras expressões... A minha memória (que não ajuda muito)
trouxe essas por enquanto. Estou, claro, aberto a sugestões. Como é uma pesquisa
empírica, umas voluntárias ajudariam... Exigência: ser mineira. Conversando com
lingüistas, fui informado: é prudente que tenham cabelos pretos, espessos e lisos,
aquela pele bem branquinha... Tudo, naturalmente, em nome da ciência. Bem, eu me explico:
é que, características à parte, as conformações físicas influem no timbre e som da
voz, e eu não posso, em honrados assuntos mineiros, correr o risco de ser inexato,
entendem?