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domingo, 15 de abril de 2012

Cartas Perdidas de Caio

Porto, acho que 23.11.77
Nei,
tanto silêncio meu que, eu sei, pode ter soado a desamor. Não foi não, só um acúmulo de coisas internas e externas, lançamento de livro, insegurança, medos, bodes e bodes que não vale a pena enumerar. Mas hoje pensei forte em você porque fui na sucursal da Veja levar – depois de muita marcação – uma resenha que o Humberto Werneck tinha pedido sobre “A Vaca e o Hipogrifo”, do Mario Quintana – e que eu abri citando aqueles versos seus, o dinossauro, a borboleta, é incrível como ele dinossaureia e borboleteia nos textos. Depois levei na Folha a minha página de quinta, estou só com duas páginas, agora uma às segundas, outras às quintas, sobre o que eu quiser, depois fui no psiquiatra e saí tão desantenado (demônios novos na roda...) que não suportei sequer a idéia de tomar um ônibus na Praça XV e voltar pra casa.

Daí fui ver um filme qualquer, meu deus, uma pornochanchada grossíssima, “Gen­te Fina é Outra Coisa”, do Calmon, que já fez coisa boa, e saí mais desantenado ainda e na rua tava uma puta agitação com a história de terremoto no interior. Só li as manchetes, meio apavorado, apocalíptico demais, acabei enfrentando a Praça XV, a casa vazia, eu e Tigra, ,cozinhei, lavei pratos e panelas, fiz um chá de cidró-hortelã-funcho colhidos no quintal, que to tomando agora, dez e meia da noite e uma pontada do lado esquerdo da cabeça, que não me larga faz dias.

E eu tava no meio da comida quando me dei conta que tinha começado a chorar e a repetir meio dementemente “tudo-faz-tanto-tempo-tudo-faz-tanto-tempo”, talvez em parte um efeito colateral da matéria enorme sobre o Tropicalismo que li ontem em parte uma sensação presente, cada vez mais, e mais constante, de qualquer coisa como estar-ficando-velho, ou já ter atrás de mim uma história dessas com agá mesmo. E uma solidão muito grande. E uma sede. E uma vontade de ir embora, obsessiva, esgotante. E uma falta de coragem. E um desgosto com a cidade semi-destruída, com as pessoas esvaziadas e semi-destruídas também (e eu nem sequer me excluo disso).

Me olho no espelho e vejo uma cara endurecendo dia a dia, uma falta de espanto nos olhos. Não faço nada. Um dia engendra o outro, sem alegria, desde que voltei. E quando andei por aí parecia tudo tão novo, me veio outra vez uma curiosidade pelo mundo, um carinho pelas pessoas, uma vontade de continuar vivo, de lutar, de seguir. As águas estagnadas de escorpião deste porto parecem fazer dueto com o zero grau do meu escorpião ascendente. Meu deus (há poucos dias fiz uma grande descoberta: deus está na clínica), quanta queixa sem ponto de exclamação. Por isso também tava evitando escrever, porque sabia que a torneira ia abrir e jorrar água barrenta.

Me conta de você, Ida, de Daniel e Ju Jaegger, das batalhas pela nova casa (espero que ainda esteja aí na antiga, senão essa carta vai se perder). Vocês foram tão bonitos comigo quando estive aí, não agradeci porque sou sem jeito pressas coisas, mas tinha um agradecimento implícito que acho que foi percebido. Olha, se eu continuar escrevendo, vou continuar me queixando, então vou te mandar este poema do César Vallejo, que eu gosto muito. Lá vai:
ESPERGESIA
Yo nací un día
que Dios estuvo enfermo.

Todos saben que vivo,
que soy malo; y no saben
del diciembre de ese enero.
Pues yo nací un día
que Dios estuvo enfermo.

Hay un vacío
en mi aire metafísico
que nadie ha de palpar:
el claustro de un silencio
que habló a flor de fuego.

Yo nací un día
que Dios estuvo enfermo.

Hermano, escucha, escucha...
Bueno. Y que no me vaya
sin llevar diciembres,
sin dejar eneros.
Pues yo nací un día
que Dios estuvo enfermo.

Todos saben que vivo,
que mastico... y no saben
por qué en mi verso chirrían,
oscuro sinsabor de ferétro,
luyidos vientos
desenroscados de la Esfinge
preguntona del Desierto.

Todos saben... Y no saben
que la Luz es tísica,
y la Sombra gorda...
Y no saben que el misterio sintetiza...
que él es la joroba
musical y triste que a distancia denuncia
el paso meridiano de las lindes a las Lindes.

Yo nací un día
que Dios estuvo enfermo,
grave.

Uma força grande pro vestibular da Ida. Agradeça por mim ao Moacir Amâncio a publicação da entrevista, e diga que to esperando a Estação dos Confundidos. Falar nisso, pedi ao Mangarielo que te levasse um exemplar das Pedras. Levou? Se não levou, dede ele pra mim.

A pontada na cabeça continua. Não consigo parar de escrever. Ocê me agüenta mais algumas laudas? Podia ser assim:
Yo naci um dia
que Dios estuve loco,
despelotado
Produzindo (é a palavra) as páginas pra Folha, veio um lado bom – não-ir à redação – e um lado mau, me esgotar pra parir textos imbecis praquele jornal imbecil. Veja só: fui escrever mau e escrevi meu : lapso freudiano, típico. Sandra e Gui chegam, semi-demolidos, foram assistir “Face to Face”...

Às vezes tenho vontade de dormir até 1º de janeiro de 1978. Andei tão mas tão paranóico que parei de fumar e de beber. Fiquei inteiramente careta. A última vez que fumei, me deu um nervoso tal que mudei de lugar todos os moveis do quarto e fiz uma puta faxina: eram cinco da matina quando terminei. O que eu diria dessa coisa que não dá mais pé? Nada: em boca fechada não entra mosca. El Zwetsch mandou o Vício da Palavra, que distribuí por aqui, preciso escrever a ele, pero no hay saco, fiquei coma puta rejeição do livro- guardei um exemplar pra mim sem conseguir ler nada.

Aristides Klafke passou por aqui, ficou uns dias aqui em casa, foi bom, uma cuca nova! acho que sou meio vampiro de cucas, depois se mandou pra Montevidéu pra ver dois amigos. Sábado chegou um cartão dele: os dois amigos estão presos há três meses, sem perspectiva de serem soltos...Soube pelo Julio que ocê teve no Rio, pro lançamento do Torpalium. Ele vezenquando escreve cartas dementíssimas, ótimas, e eu fico pensando que podia ter sido diferente, se ele não fosse assim como é e se eu não fosse assim como sou, estás a ver que já parto de uma premissa impossível. Mas.

Pifa voltou de Vitória pra pegar no meu pé. Vai ficar aqui até o fim deste mês. Transei um pouco, depois destransei, cansei, bodiei. Detesto a sensação de “ter compromisso” com alguém. Mas a solidão rói, dói, mói, como diz a Lara de lemos. Estou tentando me organizar para ir embora: decidi (teoricamente, até agora) dar uma injeção de adrenalina na minha Cader­neta de Poupança (por en­quanto tenho 50 pilas!), mas sofro ataques cotidianos fortíssimos de bundamolismo. Magliani voltou triste. Bem, Magliani é triste, mas voltou mais ainda, dizendo que a barra do desemprego tá pesada . Me cansei, desisti, se há sorte? eu não sei, nunca vi. Vontade de ver um filme de vampiro. Você tem a “Vaca e o Hipogrifo?” Se não tem diz, que te mando. O Mario Quintana lá pelas tantas diz que adora filme de vampiro. Quando eu tava autografando as “Pedras” ele entrou na fila para apanhar um autógrafo. Eu abanei o rabo de puro contentamento, e disse: “O título do livro é de um poema seu”. Ele agitou as asas de borboleta, fixou em mim os olhos de dinossauro e soltou: “Eu sei. Foi só porisso que comprei”. Achei marioquintanamente ótimo.

Você tem alguma receita pra gente mudar de vida? E pra tomar decisões? E para mudar de personalidade? E para flagrar-se? E para pagar o karma em suaves prestações? E pra desorientação aguda, você tem? Se tiver, me passa que eu preciso. Se não tiver, me escreve e me dá um corte. Vontade, também, de tomar uma Brahma contigo e ouvir Carmélia Alves. Any­way, um beijo. Segura as pontas daí que eu seguro as daqui. E não se preocupe: Deus estaria conosco até o pescoço, se não estivesse na divisão Melanie Klein.
Te gosto.
Sempre. Caio

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