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quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

“Lembro-me de ti
Nesse instante absoluto,
A vida conduzida por um fio de música.
Intenso e delicado, ele vai-nos fechando num casulo
Onde tudo será permitido.”
(Lya Luft)

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Se todas as tuas noites fossem minhas
Eu te daria, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa
E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia.
Se todos os teus dias fossem meus
Eu te daria, a cada noite
O meu tempo lunar, transfigurado e rubro
E agudo se faria o gozo teu.

Hilda Hilst

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

clariceando

"Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos relógios."  Clarice Lispector in: Água Viva

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Clariceando



"Minha avidez é a minha mais inicial fome: sou pura porque sou ávida."

Clarice Lispector in: A Paixão Segundo G.H.
 

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Palavras

Espada entre flores,
Rochedo nas águas,
Assim firmes, duras,
Entre as coisas fluídas,
Fiquem as palavras,
As vossas palavras.

Pois se por acaso
Dentro dos sepulcros
Acordassem as almas
E em sonhos confusos
Suspirassem rumos
De história passadas
E houvesse um tumulto
De ânsias e de lágrimas,

- lembrassem as lágrimas
caídas no mundo
nas noites amargas
cercadas dos muros
das vossas palavras.
Todas as palavras

Nos espelhos puros
Que a memória guarda,
Fique o rosto surdo,
A música brava
Do humano discurso.
De qualquer discurso.

Só de morte exata
Sonharão os justos,
Saudosos de nada,
Isentos de tudo,
Pascendo auras claras,
Livres e absolutos,
Nos campos de prata
Dos túmulos fundos.

No meio das águas,
Das pedras, das nuvens,
Verão as palavras:
Estrelas de chumbo,
Rochedos de chumbo.
A cegueira da alma.
O peso do mundo.

Adeus, velhas falas
E antigos assuntos!

(Cecília Meireles)
Certas Palavras
 
Certas palavras não podem ser ditas
em qualquer lugar e hora qualquer.

Estritamente reservadas
para companheiros de confiança,
devem ser sacralmente pronunciadas
em tom muito especial
lá onde a polícia dos adultos
não adivinha nem alcança.

Entretanto são palavras simples:
definem partes do corpo, movimentos, atos
do viver que só os grandes se permitem
e a nós é defendido por sentença
dos séculos.

E tudo é proibido. Então, falamos.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Clariceando


" um amigo me chamou para ajudá-lo a cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui. Não por nobreza: cuidar dele faria com que eu esquecesse de mim. E fez. Quando gemeu “dói tanto”, contei da moça vadia sozinha chorando, bebendo e fumando (como num bolero). E quando ele perguntou “por quê?”, compreendi ainda mais. Falei: “Porque é daí que nascem as canções”. E senti um amor imenso. Por tudo, sem pedir nada de volta. Não-ter pode ser bonito, descobri. Mas pergunto inseguro, assustado: a que será que se destina?"

Caio Cesar Abreu  in: Pequenas Epifanias

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Clariceando


 "O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel. "


João Cabral de Melo Neto, in "Os três mal-amados"

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

TENTATIVA

Andei pelo mundo no meio dos homens!
uns compravam jóias, uns compravam pão.
Não houve mercado nem mercadoria
que seduzisse a minha vaga mão

Calado, Calado, me diga, Calado
por onde se encontra a minha sedução.

Alguns, sorriam, muitos, soluçaram,
uns, porque tiveram, outros porque não.
Calado, Calado, eu, que não quis nada,
por que ando com pena do meu coração.


Cecilia Meireles in: Obras Poéticas
"Que eu seja forte, como o grito de guerra dos negros velhos, que na aflição encontraram sua força.
Que eu seja puro, como as crianças que encontraram
na morte o recomeço da vida.
E assim como os índios e caboclos das matas, eu conheça
a cura, a sabedoria, e a simplicidade.
Pra que nem na derrota, eu desista da luta e da evolução...
Que eu veja no aprendizado de hoje, minhas lições do passado.
Que eu seja guerreiro, extrovertido, como os baianos, pra que o convívio comigo mesmo seja mais que suportável.
Que eu tenha sorte no amor, na vibração das pomba giras,
minha vida eterna seja boa companhia.
E assim como os guardiões, eu seja forte, sem perder a ternura,
e não tenha medo da luta.
Pra que nem no desespero, eu perca a fé,
a noção do amor e da caridade...
E que mesmo que seja traído, que tenha inimigos,
eu não perca o amor ao próximo.
Que eu não esqueça meu caminho, que eu siga sempre a luz.
e pra me divertir, que seja como os exús, que na tristeza enxergam alegria, e nas trevas enxergam a luz.
Que eu seja criança, adulto e ancião.
Sendo puro, aprendiz e sábio.
Que eu seja sempre lembrado e testado...
Pra que minha vida não perca o sentido.
Que Ogum me proteja com sua lança de luz.
Que Oxúm me abençoe em seus grandes rios.
Que Iemanjá me lave em suas águas salgadas.
Que Xangô me mantenha em justiça.
Que Obaluae me permita ter saúde.
Que Oxóssi me traga a sabedoria.
Que Iansã abra meus caminhos.
Que Nanã me acaricie como neto.
E que quando encontrar me com o destino final
de todo ser encarnado, seja abençoado por Omulú.
Pra que me torne, um mensageiro direto de Oxalá...
Salve o povo da direita, salve o povo da esquerda...
(por Rafael Ramos @poetavadio)

IM & TININ FEIRA DE MUSICA BRASIL FOTO: JOÃO SALES

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

 


“Há muito tempo sim, não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias

( tão leves ) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que a sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.”

 Carlos Drummond de Andrade

SONHO IMPOSSÍVEL - Maria Bethânia

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

"E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis. ''


Carlos Drumond de Andrade in: Campo de Flores

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Clariceando


"A alegria da moça era assim:
As flores no jarro. Uma era vermelha. Tinha talo fraco. Uma era cor-de-rosa. Era pequena. Sobre o chão empoeirado suas pernas pousando."

Clarice Lispector: A Cidade Sitiada
 "Que eu continue alerta. Que, se necessário, eu possa ter novamente o impulso do vôo no momento exato. Que eu não me perca, que eu não me fira, que não me firam, que eu não fira ninguém. Livra-me dos poços e dos becos de mim, Senhor.
Que meus olhos saibam continuar se alargando sempre."
 Caio Fernando Abreu in: Ovelhas Negras

sábado, 18 de fevereiro de 2012

“Estamos perdidos há muito tempo.
O país perdeu a inteligência e a consciência moral.
Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada.
Os caracteres, corrompidos.
A prática da vida tem por única direção a conveniência.
Não há princípio que não seja desmentido.
Não há instituição que não seja escarnecida.
Ninguém se respeita.
Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos.
Ninguém crê na honestidade dos homens públicos.
Alguns agiotas, felizes, exploram.
A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia.
O povo está na miséria.
Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente.
O Estado é considerado na sua ação fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências.
Diz-se por toda a parte: o país está perdido!
Algum opositor do actual governo? Não!”

Eça de Queiróz

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Clariceando


Das Pedras

Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida…
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.

Cora Coralina

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012


"Pensar no que ainda não veio é fugir, buscar apoio em coisas externas a mim, de cuja consistência não posso duvidar porque não a conheço. Pensar no que está sendo, ou antes, não, não pensar, mas enfrentar e penetrar no que está sendo é coragem. Pensar é ainda fuga: aprender subjetivamente a realidade de maneira a não assustar. Entrar nela significa viver."
 
Caio Fernando Abreu In:Itinerário - O Inventário do Ir-remediável

"Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais."

(Clarice Lispector)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Clariceando...

Roseando...




"Eu já achava que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia ser como na sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho. Era o que eu acho, é o que eu achava. Ser dono definitivo de mim, era o que eu queria, queria. Existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. A gente quer se afastar de si próprio... pra isso é que o muito se fala. O senhor sabe o que é o silêncio? É a gente mesmo, demais." Guimarães Rosa in: Grande Sertão Veredas

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Clariceando

capturado do albúm  Frases de Clarice

"(...)  -Mas não seria natural.
-Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.
-Natural é encontrar. Natural é perder.
-Linhas paralelas se encontram no infinito.
-O infinito não acaba. O infinito é nunca.
-Ou sempre "


Caio Fernando Abreu In: O dia em que Júpiter encontrou Saturno



"... Mas se deixou levar por sua convicção de que os seres humanos não nascem para sempre no dia em as mães os dão a luz, e sim que a vida os obriga outra vez e muitas vezes a parirem a si mesmos."   Gabriel García Márquez in: O Amor em Tempos de Cólera
Seja Paciente

Quero lhe implorar
Para que seja paciente
Com tudo o que não está resolvido em seu coração e tente amar.
As perguntas como quartos trancados e como livros escritos em língua estrangeira
. Não procure respostas que não podem ser dadas porque não seria capaz de vivê-las.
E a questão é viver tudo.
Viva as perguntas agora.
Talvez assim, gradualmente, você sem perceber, viverá a resposta num dia distante.

Rainer Maria Rilke

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Clariceando...

"Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isto de estado agudo de felicidade." Clarice Lispector in: Água Viva

Clariceando

"Vou crescendo com o dia que ao crescer me mata certa vaga esperança e me obriga a olhar cara a cara o duro sol." Clarice Lispector in: Agua Viva

Pra encantar o domingo

sábado, 11 de fevereiro de 2012

"O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba. Paulo Mendes Campos in: "O amor acaba"

Clariceando

"Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-la na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado, ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior." Clarice Lispector - A Repartição dos Pães

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Tarde de vento.
Até as árvores
querem vir para dentro.


Paulo Leminski

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

"O importante era isso, se entregar à vida. E a vida, no fundo, era uma verdadeira delícia..." Lygia Fagundes Telles
"O perfume das bananas é escolar e pacífico. Quando mamãe disse: filha, vovô morreu, pode falhar de aula, eu achei morrer muito violoncelírico. Abriam-se as pastas no começo da aula, os lápis de ponta fresca recendiam. O rapaz de espinhas me convocava aos abismos, nem comia as goiabas, desnorteada de palpitações. Filho-da-puta se falava na minha casa, desgraçado nunca, porque graça é de Deus. No teatro ou no enterro, o sexofone me põe atrás do moço, porque as valsas convergem, os lençóis estendidos, abril, anil, lavadeira no rio, os domingos convergem. O entre-parênteses estaca pra convergir com mais força: no curso primário estudei entusiasmada o esqueleto humano da galinha. Quero estar cheia de dor mas não quero a tristeza. Por algum motivo fui parida incólume, entre escorpiões e chuva.” Adélia Prado

Clariceando...

"
Hoje é dia de muita estrela no céu, pelo menos assim promete esta tarde triste que uma palavra humana salvaria. Abro bem os olhos, e não adianta: apenas vejo. Mas o segredo, este não vejo nem sinto. A eletrola está quebrada e não viver com música é trair a condição humana que é cercada de música. Aliás, música é uma abstração do pensamento...." Clarice Lispector in: A descoberta do mundo

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

- Alô, cotovia! Aonde voaste, Por onde andaste, Que saudades me deixaste? - Andei onde deu o vento. Onde foi meu pensamento Em sítios, que nunca viste, De um país que não existe . . . Voltei, te trouxe a alegria. - Muito contas, cotovia! E que outras terras distantes Visitaste? Dize ao triste. - Líbia ardente, Cítia fria, Europa, França, Bahia . . . - E esqueceste Pernambuco, Distraída? - Voei ao Recife, no Cais Pousei na Rua da Aurora. - Aurora da minha vida Que os anos não trazem mais! - Os anos não, nem os dias, Que isso cabe às cotovias. Meu bico é bem pequenino Para o bem que é deste mundo: Se enche com uma gota de água. Mas sei torcer o destino, Sei no espaço de um segundo Limpar o pesar mais fundo. Voei ao Recife, e dos longes Das distâncias, aonde alcança Só a asa da cotovia, - Do mais remoto e perempto Dos teus dias de criança Te trouxe a extinta esperança, Trouxe a perdida alegria. Manuel Bandeira
Cliquei o botão do controle remoto da televisão e me vi dentro de um enorme templo, completamente lotado. O pregador dizia aos fiéis: “A dúvida é a principal arma do diabo”. Ele não teve coragem de dizer tudo o que essa afirmação piedosa contém. Se ele está no púlpito, lugar sagrado, deve ser o bispo ou missionário. Sendo bispo ou missionário, tem acesso privilegiado a Jesus: o Peixe Dourado lhe revelou pessoalmente os mistérios do Mar… Fala diariamente com Jesus. Segue-se que aquilo que ele fala são palavras de Jesus. Assim, se alguém tem dúvidas sobre o que ele diz, está duvidando de Jesus. Conclusão: quem duvida do que ele diz está enredado nas artimanhas do diabo… Penso o contrário: que as convicções são as principais armas do diabo. As maiores atrocidades da história da humanidade, religiosas e políticas, foram cometidas por pessoas que não tinham dúvidas sobre a verdade dos seus pensamentos. As pessoas que duvidam, ao contrário, são tolerantes. Sabem que o que pensam não é a verdade. Seus pensamentos são meros “palpites”. Por isso ouvem o que outros têm a dizer, pois pode ser que a verdade esteja com eles… (Rubem Alves in Pensamentos que penso quando não estou pensando

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

"E agora o que fazer com essa manhã desabrochada a pássaros? A voz de uma passarinho me recita." Manoel de Barros

Clariceando

"Vejo as flores na jarra: são flores do campo, nascidas sem se plantar, são lindas e amarelas. Mas minha cozinheira disse: mas que flores feias. Só porque é difícil compreender e amar o que é espontâneo e franciscano. Entender o difícil não é vantagem, mas amar o que é fácil de se amar é uma grande subida na escala humana." Clarice Lispector in: A descoberta do mundo

domingo, 5 de fevereiro de 2012

O padeiro - Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo. Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando: - Não é ninguém, é o padeiro! Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo? "Então você não é ninguém?" Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém... Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno. Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!" E assobiava pelas escadas. Rubem Braga

Clariceando

"Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário (…). Eu que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu." Clarice Lispector in Felicidade Clandestina
“Meu Deus, meu Deus! Como tudo é esquisito hoje! E ontem tudo era exatamente como de costume. Será que fui eu que mudei à noite? Deixe-me pensar: eu era a mesma quando me levantei hoje de manhã? Estou quase achando que posso me lembrar de me sentir um pouco diferente. Mas se eu não sou a mesma, a próxima pergunta é: ‘Quem é que eu sou?’. Ah, essa é a grande charada!” Lewis Carroll in: Alice no País das Maravilhas

Cantares de Minas

sábado, 4 de fevereiro de 2012

"Não sou exigente com nada. Só quero que Deus conserve a beleza das coisas simples. Das mais simples. E se sobrar um pouco de tempo, que Ele me conserve no teu abraço, ainda hoje. Amanhã é domingo. Priscila Rôde

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

"Uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende? Por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço... '' Caio Fernando Abreu In:Para uma avenca partindo